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A grama do vizinho

A China substitui o Brasil como maior exportador para a Argentina e expõe os erros da nossa política

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Encalhado. As vendas para os parceiros continentais estão menores do que há dez anos. Pior para a indústria e as médias empresas nacionais – Imagem: iStockphoto e Pedro Danthas/Volkswagen do Brasil
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A perda inédita, no ano passado, da posição do Brasil como maior exportador para a Argentina, lugar que passou a ser ocupado pela China, expõe bem mais do que uma alteração episódica e restrita à esfera comercial. A confluência de ataques constantes, até pouco tempo, do governo brasileiro ao seu maior parceiro comercial, a gestão incompetente da economia, o desestímulo sistemático ao setor industrial, combinados à concessão de inúmeros benefícios e privilégios ao agronegócio, agora parecem cobrar um preço.

Segundo o Instituto Nacional de Estadística y Censos, Indec, órgão do ministério da Economia argentino equivalente ao nosso IBGE, a participação estimada das importações originadas na China, no total das compras externas do país em 2021, equivale a 21,4% do total de 63,2 bilhões de dólares, enquanto a aquisição de produtos e serviços brasileiros ficou em 19,7%.

De acordo com o estudo “Integração Econômica Bilateral Argentina-Brasil: Reconstruindo Pontes”, elaborado pelo técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Pedro Silva Barros e outros autores, as mudanças na economia mundial desencadeadas pela ascensão chinesa reduziram os ganhos econômicos gerados para o Brasil pelas relações com a Argentina e pela participação no Mercosul. O Uruguai discute no momento a possibilidade de um tratado de livre-comércio com a China à revelia do bloco e, mais que nunca, “as relações entre o Brasil e a Argentina precisam ser novamente reconstruídas e renovadas para responder aos novos desafios colocados”. Brasil e Argentina, diz o estudo, estão destinados à convivência e a compartilharem problemas e soluções, consequentemente, a opção pela cooperação é a alternativa mais promissora para responder a esses desafios comuns.

Em declínio nas pesquisas eleitorais, o governo ignora os avanços da China na economia local, entre eles a confirmação, pela montadora chinesa Great Wall, de um investimento de 10 bilhões de reais no Brasil para a produção de veículos híbridos ou totalmente elétricos. Trata-se de uma oportunidade aberta, em parte, pelos descalabros da gestão econômica que parecem ter desencorajado montadoras estadunidenses e europeias presentes há décadas no País a persistir com investimentos para modernizar as suas estruturas. A respeito desse assunto, cabe lembrar que não só a China, mas também a Ford optou pela Argentina em desfavor do Brasil, no ano passado, como sua nova base para produzir veículos na América do Sul.

A mudança coincide com a notória hostilidade do governo Bolsonaro ao Mercosul

Com a perda da primeira posição para a China nas vendas à Argentina, o comércio de empresas brasileiras no continente, menor do que há dez anos, encolherá ainda mais. Esse encolhimento significa um golpe adicional à fragilizada indústria brasileira, que encontra no Mercosul a principal clientela para a manufatura. “O comércio do Brasil com a Argentina é muito diferente daquele entre a China e a Argentina, é uma relação mais equilibrada”, sublinha Barros. Com a Argentina, diz, em geral o Brasil tem um pequeno superávit, mas a pauta é concentrada em manufaturados. “Cada dólar gerado por exportações do Brasil para a China gera cinco vezes menos emprego do que cada dólar de exportações para a Argentina”, destaca o economista.

A comparação por volumes exportados deixa ainda mais nítidas as vantagens do comércio regional. “Cada tonelada que o Brasil exporta para a China vale 250 dólares e cada tonelada exportada para Argentina vale mais de mil dólares. Além disso, países que eram destino de financiamentos do BNDES, a exemplo de Cuba, República Dominicana, Venezuela, Angola e Moçambique, eram justamente aqueles em que o preço do quilo exportado pelo Brasil era maior”, ressalta Barros. O peso da tonelada exportada para a Venezuela chegava a 1,8 mil dólares, para a República Dominicana era de 1,25 mil. “É claro que exportamos muito mais para a China, mas é apenas celulose, soja, petróleo e ferro. Isso é mais de 90%. Enquanto, para a Argentina, a diversificação é enorme.”

O estudo do Ipea mostra a retirada significativa de apoio institucional e financeiro do governo brasileiro à integração do País no Mercosul. Desde 2016, não há novos aportes no Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) e, em 2019, ocorreu a saída unilateral do Brasil do Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da Associação Latino-Americana de Integração, a Aladi. O CCR-Aladi chegou a representar 90,9% das importações intrarregionais em 1989.

Olá, adeus. A importação de vacinas da China disparou com a pandemia. A Ford preferiu a Argentina ao Brasil – Imagem: Walmir Cirne/Agif/AFP e David Lillo/Ministério da Saúde do Chile

“Perder mercado regional tem um custo para o País muito maior do que o mero valor, porque as exportações intrarregionais são mais intensivas em emprego, têm mais valor agregado e também são muito mais acessíveis às pequenas e médias empresas, além de constituírem o primeiro passo para a sua internacionalização, que tem se atrofiado nos últimos anos”, chama atenção Barros.

Um aspecto a ser considerado em eventual renovação do Mercosul é, segundo o estudo do Ipea, que “nunca houve agenda consistente para a inserção em terceiros mercados de produtos de origem agropecuária, em que os países do bloco têm notória competitividade”. Outro é a necessidade de haver uma convergência de políticas econômicas e industriais entre os países do bloco porque, “ao tentar proteger-se das importações de fora do bloco, via tarifa externa comum, os partícipes devem possuir um tecido produtivo e políticas que dialoguem com seus interesses”. Reavaliar o uso de mecanismos para a facilitação de pagamentos dos intercâmbios intrarregionais sem a utilização de divisas, fortalecer a integração de infraestrutura, especialmente os corredores bioceânicos, e considerar os financiamentos de exportação de bens e serviços do BNDES, vinculados à utilização de mecanismos de promoção e facilitação de pagamentos do comércio intrarregional, são outras sugestões do estudo.

Após bravatas em série contra o maior parceiro comercial, o governo deixou de se manifestar quando a China passou a colecionar vitórias. Segundo afirmou Marco Fernandes, pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, na coluna Notícias da China, do Brasil de Fato, o governo não vetou a chinesa Huawei, maior empresa mundial de equipamentos de telecomunicações, no leilão da tecnologia 5G e expôs o fracasso da narrativa oficial anti-China. A empresa chinesa, concluem alguns analistas, teria saído vencedora, apesar de não participar do leilão, pois continuará fornecendo para 40% das operadoras brasileiras que, anos atrás, foram estruturadas com equipamentos da sua fabricação e que agora serão substituí­dos por versões 5G produzidas pela própria Huawei. O que os EUA pretendiam, cabe ressaltar, era o banimento total da Huawei, o que implicaria desinvestimento estimado em 100 bilhões de dólares em equipamentos chineses das operadoras e sua substituição por similares produzidos na Europa, pois os Estados Unidos ainda não fabricam equipamentos 5G.

Cada tonelada que o Brasil exporta para a China vale 250 dólares. Para a Argentina, mil dólares

Os muitos gols contra marcados por Bolsonaro, Guedes e a diplomacia brasileira abriram espaço para a China ampliar, inclusive, as suas conexões institucionais diretas com os negócios e o empresariado locais, por exemplo na área de e-commerce. Um estudo realizado, não pelo Ministério da Economia, mas pelo Conselho Empresarial Brasil-China mostra que, sem realizar investimentos para tornar suas marcas mais conhecidas na China, o Brasil desperdiça a chance de aumentar as exportações para o país asiático via comércio eletrônico chinês. As principais plataformas de ­e-commerce na China, diz o estudo, têm mais de 10 mil produtos que utilizam o termo “­Brasil” em seu título, mas a grande maioria deles é vendida por empresas chinesas ou de outros países. “A marca de açaí em pó de maior sucesso é da Bélgica. O pinhão brasileiro é comercializado por firmas dos EUA e da China. Várias marcas importadas e chinesas utilizam o grão de café do Brasil, em um mercado que se expande rapidamente”, diz o estudo do CEBC, intitulado As Oportunidades e os ­Desafios para Empresas ­Brasileiras no Maior ­Mercado de E-commerce do ­Mundo, patrocinado pela Confederação da Agricultura e Pecuária e pela Klabin.

Além de aumentar as importações da Argentina, a China amplia a relação econômico-financeira com o país latino-americano por meio de doações e exportações de vacinas, do mesmo modo como procede em relação ao Brasil. Segundo dados do Indec, as vacinas chinesas foram o terceiro maior item das importações feitas pelo país vizinho em dezembro, no total de 86 milhões de dólares, superados pelo gasóleo (270 milhões de dólares) e pela gasolina, exceto a de aviação (95 milhões de dólares). Outro destaque é a notícia, divulgada na terça-feira 1º, do maior investimento feito pela China na Argentina, de 8,3 bilhões de dólares, para a construção de uma nova usina nuclear em Buenos Aires, o primeiro projeto nuclear chinês na América Latina.

A questão transborda para a dimensão político-eleitoral, mostra a denúncia de ONGs de que a antecipação do processo de acolhimento do Brasil na OCDE, com o afrouxamento, ao que parece, de vários requisitos formais, denota um temor de que a possível eleição de Lula resulte em maior aproximação do Brasil com a China e distanciamento dos países ocidentais que integram a organização. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A grama do vizinho”

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