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A finança e suas proezas

O capital financeiro, mais distante da produção, usa o crédito bancário para alavancar posições nos EUA

A finança e suas proezas
A finança e suas proezas
A nova sede do JP Morgan Chase em Nova York espelha o poder sem limite dos bancos que financiam as fusões e aquisições e as fintechs e assemelhados – Imagem: Redes Sociais/JP Morgan
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Em artigo recente, o Financial Times cuida dos riscos embutidos no aumento de empréstimos a grupos financeiros não bancários nos EUA. O jornal acentua possibilidades de risco sistêmico.

“A maior parte da exposição a instituições financeiras não bancárias está concentrada em 13 bancos, incluindo JP ­Morgan Chase, Wells Fargo e Barclays. Os empréstimos bancários dos EUA para empreendimentos de fusões e aquisições e instituições financeiras não bancárias preo­cupam os reguladores, que receiam que a intensificação dos laços crescentes entre os dois habitantes dos mercados financeiros possa culminar em risco sistêmico.

Os empréstimos a instituições não bancárias atingiram, aproximadamente, 1,2 trilhão de dólares no fim de março, de acordo com um relatório da Fitch ­Ratings, aumento de 20% em relação ao ano anterior, impulsionado pelos empréstimos às fintechs e assemelhados.

Os empréstimos às empresas não financeiras, aquelas que produzem bens e serviços, subiram apenas 1,5% no mesmo período.” Nada de novo.

No livro Manias, Crashes and Panics, Charles Kindleberger diz que, na crise de 1929: “À medida que o mercado de ações se movia em direção ao seu ápice, os empréstimos foram canalizados para o mercado de call-money (empréstimos de curto prazo para operações na Bolsa de Valores) em detrimento do consumo e da produção; o volume de dinheiro para essas operações especulativas subiu de 6,4 bilhões de dólares no fim de dezembro de 1928 para 8,5 bilhões de dólares no começo de 1929.

No início de outubro desse ano fatídico, os bancos de Nova York e também os sediados em outras cidades dos EUA tornaram-se credores mais cautelosos nos empréstimos para o mercado de ações. Quando o mercado de ações despencou, o sistema de crédito congelou de repente”.

Os economistas Daniel L. Greenwald, Martin Lettau e Sydney C. ­Ludvigson sapecaram no National Bureau of ­Economic Research um estudo que investiga as relações entre o desempenho da Bolsa de Valores nos Estados Unidos e o crescimento do PIB. Eles concluem que o mercado de ações dos EUA foi “excepcionalmente bem no pós-Guerra”, melhor ainda nas três últimas décadas. Durante os 29 anos transcorridos entre o início de 1989 e o fim de 2017, o valor das ações   das empresas não financeiras cresceu a uma taxa anual de 6,9% ao ano. Nos 29 anos anteriores, entre o início de 1959 e o fim 1988, a valorização das ações dessas empresas alcançou 3,2% ao ano.

“Em contraste, o valor real do que foi realmente produzido pelo setor apresenta um padrão oposto: o valor agregado real­ líquido das empresas não financeiras cresceu 4,4% ao ano entre o início de 1959 e o fim de 1988, em comparação com apenas 2,5% ao ano no período mais recente.”

Os autores incomodam-se com os resultados dessas tendências:  um abismo cada vez maior entre os mercados financeiros e a economia da produção e do emprego. A teoria econômica dos livros didáticos, dizem eles, nos ensinaram que o mercado de ações e a economia da produção e do emprego devem compartilhar uma trajetória comum. Os fatores que impulsionam o crescimento econômico dito “real” devem ser os mesmos que fomentam o aumento do valor das empresas ao longo do tempo.

“Esse princípio da teoria macroeconômica não foi corroborado pelos dados. O que, então, tem sido responsável pelo boom da valorização dos ativos de capital durante o período mais recente?”

O aumento de empréstimos a grupos financeiros não bancários acentua possibilidades de risco sistêmico

Boa pergunta. Os autores vão trabalhar os dados para buscar uma resposta mais precisa. Advertem que os dados devem ser interpretados a partir de um modelo estrutural que permita a compreensão do fenômeno sob observação. Tentam escapar do positivismo empirista mais tosco, sempre empenhado em demonstrar que os dados falam. Os dados não falam, respondem às perguntas conceituais do investigador.

Assim, devemos buscar os “fatos” constituídos pelo pensamento dos homens e mulheres. A dominância dos Mercados da Riqueza determinou o desenvolvimento das inovações financeiras. As técnicas de proteção mediante o uso de derivativos – associadas à expansão da informática – permitiram acelerar o volume de transações e, ao mesmo tempo, acentuaram a busca de maior segurança por parte dos investidores. Essas características, combinadas com a alavancagem baseada em créditos bancários, explicam o enorme potencial de realimentação dos processos “altistas” (formação de bolhas), assim como a ampliação das oportunidades de ganhos patrimoniais mediante fusões e aquisições.

As massas de capital financeiro estão concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais. São fundos de pensão, fundos mútuos e fundos de hedge que – operando em várias praças financeiras – usam, intensamente, o crédito bancário para “alavancar” posições em ativos. Ao tratar das formas financeiras, Marx as descreve como “formas concretas” que passam a determinar – teoricamente – as formas abstratas, elementares e fundamentais, aquelas que habitam os reinos das relações capital–trabalho e a circulação de mercadorias comandada pelo dinheiro.

Essa subordinação necessária da produção e da troca às formas financeiras se realiza na “natureza peculiar do dinheiro”, como Marx explica, para turbação dos neurônios positivistas: “… evidencia-se de novo na separação do negócio de dinheiro do comércio propriamente dito. Vemos, portanto, como é imanente ao dinheiro realizar suas finalidades à medida que simultaneamente as nega; se autonomizar em relação às mercadorias; de meio, devir fim; realizar o valor de troca das mercadorias ao se separar dele; facilitar a troca ao cindi-la; superar as dificuldades da troca imediata de mercadorias ao generalizá-las; autonomizar a troca em relação aos produtores na mesma medida em que os produtores devêm dependentes da troca”.

“Afirmar” e “negar”, “separar” e “unir” os atos e façanhas do dinheiro não induzem à separação entre produtivo e financeiro, mas manifestam as contradições imanentes à dinâmica do capital em sua saga de autorrealização.

Na Teoria Geral, capítulo sobre expectativas de longo prazo, Keynes conta uma fábula histórica: antes, o investimento era irrevogável para o capitalista, mas com o desenvolvimento dos mercados de negociação dos títulos representativos da riqueza, o capitalista pode desvencilhar-se daquele investimento especializado. A dimensão negativa dessa transformação é a possibilidade de que o curso futuro desses “valores duplicados” (financeiros) possa reduzir o impulso a criar nova riqueza produtiva. •


*Este texto valeu-se dos livros escritos pelo autor.

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A finança e suas proezas’

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