Economia
A falsa piora
Ao contrário do que diz a mídia, a situação do Brasil não declinou entre os emergentes


O aumento do risco-país, destaque no noticiário econômico nas últimas semanas, é assunto com implicações econômicas e políticas. Mas, a partir da abordagem dominante na mídia e entre economistas, candidata-se também a engrossar a avalanche de fake news forjada para manter a política econômica de austeridade do governo Bolsonaro.
As oscilações do risco-país são medidas pelo Credit Default Swap (CDS), um contrato de seguro contra risco de crédito de ativos, que é pago quando a entidade de referência, emissora do título de crédito, se torna insolvente ou incapaz de honrar as suas dívidas, ou ainda quando há calote de pagamento devido a reestruturação de dívidas, inadimplência ou moratória. É, portanto, uma proteção contra o risco de a entidade emissora, que pode ser uma seguradora, corretora, hedge fund, fundo de pensão, empresa, fundo mútuo ou uma agência governamental, não devolver adiante o montante aplicado, mais os juros e os rendimentos associados.
O investidor que comprou uma proteção através de um contrato de CDS contra um risco de crédito de 500 milhões de dólares em ativos soberanos, por exemplo, em títulos públicos chilenos, em fevereiro de 2021, com CDS de cinco anos, pagou 54,11 pontos-base, ou seja, 0,54% dos 500 milhões que investiu.
Esse tipo de contrato se tornou, nos últimos anos, o derivativo de crédito mais negociado com essa função e, por esse motivo, tem sido utilizado como uma proxy ou representação do risco-país. No exemplo, o 0,54% é o chamado prêmio de risco, ou seja, quanto aquele investidor paga para se proteger de uma eventual moratória, hipotética, do Chile.
Nos últimos meses, o CDS aumentou para o Brasil e outros emergentes, mas a elevação deve-se mais à piora da situação mundial do que a fatores específicos dos países, quesito no qual o Brasil vai muito bem, com uma situação confortável do balanço de pagamentos, graças à expressiva reserva de divisas acumulada durante os governos do PT.
A versão visa apenas reforçar a política de austeridade
Não foi, porém, o que a mídia local tentou mostrar. As manchetes das páginas de finanças nos jornais e na internet destacaram o aumento absoluto do indicador de risco. A distorção maior aparece nas matérias que dizem que o CDS do Brasil cresce mais rápido que os de países da América Latina relevantes para os investidores. “Fiz a conta e o que eu percebi é que, numa amostra de países emergentes, não só da América Latina, o Brasil está na média. Um exemplo ilustra essa situação. Em relação a 18 de março, quando o Fed começou o aperto monetário e as condições de liquidez internacionais pioraram muito, até 14 de julho, o aumento do CDS do Brasil foi de 60%, no Chile foi de 95%, na Colômbia, de 90%, no México, 100%, no Peru, 100%. Em outros emergentes, fora da América Latina, também cresceu muito nesse período. Na África do Sul, foi 100%. Portanto, o Brasil tem, na verdade, uma condição privilegiada em relação a vários outros países”, chama atenção a economista Júlia Braga, pesquisadora e professora da Universidade Federal Fluminense e ex-assessora do Ministério do Planejamento.
A análise de José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, aponta na mesma direção, de que não existe uma elevação maior do risco-país no caso do Brasil. Em balanço semanal divulgado na quinta-feira 14, Gonçalves destacou os fortes ganhos para o dólar e as perdas para os demais ativos, a aceleração da inflação nos EUA, os dados ruins de atividade na Europa e a situação de expectativa de recessão.
“Por aqui e pelo mundo, nada de diferente. Os juros futuros decolaram, a aposta na Selic passou a 14% e a inclinação da curva ficou mais negativa. Juros altos agora e risco de recessão em 2023”, sublinhou o economista. “O dólar ganhou de todas as moedas. Nada de especial com o real. Semelhante é a situação com os CDS: o risco Brasil aumentou com o dos países semelhantes.”
A superestimação da alta do risco Brasil em relação a outras economias emergentes tem por base uma opção por comparar as variações do CDS em termos absolutos, isto é, considerando só a elevação do número de pontos em lugar de fazer o cálculo em termos porcentuais, o que dá margem a uma grande distorção, como explica Braga. “O Chile, por exemplo, tem, estruturalmente, um risco-país menor que o do Brasil, e o aumento do CDS chileno, em termos absolutos, foi maior que o do CDS brasileiro. Só que é preciso levar em conta a base, o ponto de referência. Considerando as variações em termos porcentuais, o risco-país na Colômbia dobrou, no Brasil cresceu 60%. Esta é a diferença entre a forma como eu calculei e a forma como grande parte dos economistas calculou”, sublinha Braga. “Para mim, não faz sentido a forma como eles calculam. Porque uma coisa é subir 68 pontos-base em relação a 100, outra coisa é subir 68 pontos-base em relação a 300. Então, a comparação deles eu acho que está equivocada”, dispara a professora da UFF.
Guerra. Desde a invasão da Ucrânia, a Rússia deixou de ter cotação para o CDS. O Chile tem um risco-país estruturalmente baixo e não pode ser comparado ao Brasil por meio de variações absolutas – Imagem: Presidência do Chile e Miguel Medina/AFP
É importante observar que não se trata de uma simples escolha entre duas opções metodológicas, a de calcular a variação do risco-país em termos absolutos ou a de considerar as mudanças porcentuais. A primeira opção superdimensiona o risco-país do Brasil e assim fornece argumentos para reforçar o discurso contra o gasto público.
É inegável que os gastos eleitoreiros do atual governo, apesar de atenderem a necessidades urgentes da população mais carente, significam jogar no lixo a retórica da austeridade, pois Bolsonaro e o Centrão fizeram explodir o antes intocável Teto de Gastos, defendido pelo mercado. É preciso considerar, entretanto, que essa pressão pode atrapalhar a próxima administração em um momento de necessidade de consideráveis desembolsos imediatos para frear o avanço da fome e da miséria.
“É certo que o investidor não gosta da incerteza, porque ele precisa que as regras do jogo estejam claras para se posicionar. Mas eu não vejo que o indicador de risco-país, em si, tenha sido influenciado por essa situação muito veiculada na mídia ultimamente, em relação à PEC dos gastos, por toda essa grande confusão institucional que acontece no Brasil e em relação à política fiscal”, sublinha Braga. O chamado risco jurídico, diz, aumentou, mas foi por causa da inserção, na Constituição, de regras como o Teto de Gastos, que são muito restritivas e não permitem ao País ter certa discricionariedade em um momento de crise, como ocorre agora.
O fator dominante da piora do risco são as condições internacionais, confirma uma abundância de análises e estudos, no setor financeiro e na academia. De acordo com o índice de condições financeiras internacionais do banco Goldman Sachs, a situação mundial, agravada desde a guerra na Ucrânia, é a pior desde 2008-2009, em especial nos países emergentes. Faz parte do cenário mundial desfavorável o aumento da aversão ao risco, com expectativa crescente de recessão, as oscilações da economia chinesa devido à política de tolerância zero em relação à Covid, o problema energético não só na Europa e desdobramentos da guerra na Ucrânia, que ampliam o risco em todos os países.
Os emergentes estão expostos a instabilidades associadas aos ciclos das commodities
Em trabalho recente, Braga e o economista Daniel Consul de Antoni, da UFF, constataram que 70% da variação do CDS, para um conjunto de países emergentes que incluía Brasil, México, África do Sul, Turquia, Chile, Peru e Rússia, o último hoje sem computação de dados de CDS por conta da guerra, eram movimentos que aconteciam com o grupo todo.
Outro estudo, assinado por Braga e pelo economista Gabriel Aidar, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aponta que as duas principais influências externas sobre o CDS são o índice de ações VIX, das principais empresas dos EUA, e o preço internacional do petróleo. As influências internas mais importantes, isto é, aquelas produzidas em cada país, são o crescimento das reservas internacionais e a inflação, mas “apenas a taxa de crescimento do estoque de reservas internacionais demonstrou efeitos significativos sobre os prêmios de risco dos países emergentes”.
Segundo os autores da pesquisa, as economias emergentes, no contexto de um mundo dominado pelo poder financeiro, estão expostas a choques globais, que podem se refletir em seus spreads de risco-país e as condições específicas de cada nação, em especial a taxa de crescimento positiva do estoque de reservas internacionais, podem atuar como amortecedores para esses choques externos. “A importância da acumulação de reservas internacionais nas economias emergentes”, dizem, “está no fato de que os investidores internacionais podem considerá-la um sinal de contas externas sólidas e uma condição necessária para que uma economia cresça sem as restrições do balanço de pagamentos.”
Crises decorrentes de rupturas no fluxo financeiro foram frequentes na década de 1990, chama atenção o economista Carlos Aguiar de Medeiros, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e afetaram em particular os países que não possuíam controles de capital eficazes, caso do Brasil. A reintegração dos países latino-americanos aos mercados financeiros, no fim dos anos 1980 e início dos 1990, antecedeu uma era de instabilidades financeiras associadas aos ciclos de preços das commodities. Como uma condição permanente, as economias emergentes estão hoje expostas a choques globais, que podem se refletir em seus spreads de risco-país. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A falsa piora”
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