Economia
A estrada até Pequim
O Brasil desperdiça a oportunidade de criar uma parceria sólida e funcional com a China


Na esteira da Cúpula dos BRICS, realizada recentemente no Rio de Janeiro, foi assinado um memorando de entendimento entre instituições brasileiras e chinesas com vistas à realização de estudos de viabilidade da chamada ferrovia bioceânica. O conceito dessa ferrovia é muito claro. Seria um grande eixo terrestre de integração de regiões produtoras de commodities ao Porto de Chancay no Peru. Seria parte de um projeto nomeado de “Rotas de Integração Sul-Americana”, cujo objetivo é integrar, por cinco vias terrestres, o Brasil com países vizinhos. Algumas perguntas não querem calar. Vamos nos concentrar na questão relacionada com qual dinâmica de desenvolvimento deverá consolidar-se como consequência desse projeto.
O interesse imediato chinês combina reduzir custos de produção com uma saída segura dos infortúnios do Canal do Panamá. Com capital e tecnologia à disposição, a China tem operado uma verdadeira integração da infraestrutura mundo afora a partir da “Iniciativa Cinturão e Rota”. Essa iniciativa, por outro lado, entrega aos países envolvidos a possibilidade de sentarem-se à mesa de jantar como adultos e negociar os termos da adesão. Por sua vez, cada país tem poder de escolha sobre a forma de adesão: 1) consolidando sua posição de exportador de commodities e importador de bens finais ou 2) endurecer a negociação e viabilizar projetos que buscam integração produtiva entre os dois países, de forma que o país receptor de investimentos possa vir a se beneficiar de corredores industriais e beneficiamento de matérias-primas para exportação.
O segundo caminho é mais duro. Negociar com os chineses demanda paciência e alguns anos de vaivém. Não em três meses, como a burocracia de Estado brasileira imaginou com a tal “sinergia” homologada entre os nossos governos em visita de Lula a Xi Jinping, em 2024. Não se constroem projetos e consensos com os chineses em algumas reuniões de trabalho. Muito menos se consegue com eles o que os próprios fizeram com o Ocidente durante décadas, impondo termos e condicionalidades para os investidores estrangeiros. Isso demanda visão estratégica e projeto nacional, algo que o Brasil está longe de ter. Logo, o caminho escolhido pelo governo foi o mais fácil e óbvio: construir corredores de exportações de commodities.
Quais as consequências dessa escolha? Não são poucas, mas a principal está na oportunidade perdida de construção de uma parceria sólida e funcional em uma estratégia nacional de desenvolvimento baseado na reindustrialização do País. Uma série de relatos de integrantes do governo dá conta de uma tentativa de contemplar esse objetivo durante os meses de negociação de projetos da “sinergia”. A dificuldade estava do lado chinês, tendo como consequência a inviabilização deste tipo ideal de parceria. Enfim, não deu certo o “caminho ideal” por causa dos chineses, em princípio.
O caminho que sobrou foi a da consolidação de nossa opção primário-exportadora. A ainda distante construção da ferrovia bioceânica não viria somente como uma grande jogada chinesa ante o desafio do Canal do Panamá. Dado o crescente peso da Região Centro-Oeste no PIB brasileiro, essa ferrovia poderá ser o canto de réquiem para investimentos em infraestruturas orientados não à construção de corredores de exportação, mas à reunificação física do mercado nacional. O Centro-Oeste se tornará de vez o centro dinâmico da economia, colocando em questão o futuro das demais regiões.
Não se constroem projetos e consensos com os chineses em algumas reuniões de trabalho
Poderíamos imaginar a hipótese de transformação dos territórios entre Brasília e o litoral do Atlântico em um “grande favelão”, desarticulado do ponto de vista produtivo e muito próximo das antigas hinterlands litorâneas, ou economias de enclave desconectadas de uma economia nacional baseada na indústria de transformação e serviços tecnológicos. Infelizmente, esse é o quadro futuro de um país onde a política fiscal está criminalizada, a política monetária sequestrada por um punhado de bancos e nossas relações com o principal parceiro comercial se baseiam em nossas vantagens comparativas naturais.
A outra possibilidade residiria na busca de utilização de tempos maiores para negociações mais duras e complexas, mas com resultados mais interessantes e consonantes com um projeto de reinserção produtiva do País nos mercados globais. Paciência é necessária para emplacar com a China, da mesma forma que fizeram algumas nações africanas, o Irã e a Arábia Saudita. Ou seja, uma relação baseada na integração produtiva total entre os países, tendo acesso às nossas commodities e mercado interno para uma série de produtos industriais pari passu o compromisso dos chineses em estabelecer uma série de parcerias cujos objetivos iriam desde a reconstrução de todo o setor produtivo destruído por quatro décadas de neoliberalismo e pela Operação Lava Jato.
Parcerias em indústrias de ponta, como as infraestruturas de semicondutores e Inteligência Artificial, são tão fundamentais quanto reequipar o Brasil de uma indústria mecânica pesada perdida na década de 1990 e que nos tornou importadores de trilhos, escadas rolantes e trens para metrô. O déficit brasileiro de pensamento estratégico fica evidente na forma como estamos a conceber as nossas relações com a China. Trocamos a paciência pelo curto prazo. Comemoramos investimentos chineses na construção de fábricas voltadas à montagem de veículos e trens ligando produtores de soja a portos.
Estamos perdendo uma oportunidade histórica de transformação da China em parceiro fundamental no resgate do futuro perdido. O preço será caro e pode ser percebido na perda de controle do Estado para o crime organizado nas principais capitais do País. A criminalidade cresce de forma inversamente proporcional à nossa taxa de investimentos em relação ao PIB. •
*Professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos.
Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A estrada até Pequim’
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