Economia
A enésima “bondade”
O alívio no imposto socorre a indústria, mas o dividendo político é duvidoso


A penúltima bondade eleitoral do governo, o anunciado decreto para redução de 35% no IPI, exceto para os produtos fabricados na Zona Franca de Manaus, a exemplo das benesses anteriores rasga o catecismo liberal, neste caso para estimular o consumo. Trata-se de um recuo considerável, não só diante do fundamentalismo de mercado, mas também perante o Supremo Tribunal Federal, visto por Jair Bolsonaro como um arqui-inimigo, aos políticos da oposição no Amazonas e à indústria em geral, que há anos aguarda tratamento à altura da sua importância para a economia.
O novo decreto substituirá o editado em abril, que reduzia em 10% o IPI nesses produtos, mas foi questionado no STF pelo Solidariedade, com o argumento de que inviabilizaria as indústrias da Zona Franca por retirar a sua vantagem tributária. A ação do partido foi acolhida pelo ministro Alexandre de Moraes. A redução do IPI abrange cerca de 4 mil produtos e significa uma perda de arrecadação de 23,6 bilhões de reais, segundo o governo. É a maior das renúncias fiscais eleitorais, que já ultrapassam 71 bilhões e incluem os 15,51 bilhões que o governo deixará recolher do PIS-Cofins e da Cide sobre a gasolina e o etanol.
A exemplo das medidas pré-eleitorais anteriores, a melhora do tratamento da indústria faz parte da agenda da oposição, que critica a política econômica de Bolsonaro e Paulo Guedes, aceleradora do movimento de desindustrialização. Reivindica-se uma posição de importância para a indústria por ser o setor que mais gera empregos de qualidade, arrecadação tributária, difusão tecnológica, encadeamentos produtivos e competitividade externa, características que levaram os demais países a colocá-lo no centro das estratégias de modernização e recuperação econômica por meio de políticas industriais avançadas.
Nada garante, porém, que a medida de ocasião tomada resulte em apoio eleitoral do setor ao governo. Em seguida ao ataque ao sistema eleitoral brasileiro feito por Bolsonaro na segunda-feira 18, diante de embaixadores de dezenas de países, multiplicaram-se os apoios declarados de empresários e banqueiros à normalidade democrática. Na terça-feira 26, a adesão da Federação das Indústrias de São Paulo e de uma nova leva de empresários e banqueiros ao manifesto em defesa da democracia e do sistema eleitoral do País, a ser lançado em ato na Faculdade de Direito da USP no dia 11 de agosto, selou a participação de grande parte do PIB aos protestos contra os desmandos do governo Bolsonaro. Parece repetir-se, neste caso, a frustração governamental diante da tentativa de aumentar o apoio popular à reeleição com o reajuste do Auxílio Emergencial de 400 para 600 reais, medida que, segundo a pesquisa FSB divulgada na terça-feira 26, não reduziu de modo significativo a diferença das preferências de voto entre Lula e Bolsonaro nas famílias com beneficiários.
A redução do IPI soma 23,6 bilhões de reais e é a maior das renúncias fiscais eleitorais
Nos últimos anos, o governo prometeu várias vezes, mas não cumpriu, reduzir o IPI e, quando finalmente o fez, movido por casuísmo eleitoreiro diante da solidez da dianteira de Lula, não se preocupou com a crise talvez terminal que se instalaria na Zona Franca a partir de uma queda generalizada de alíquotas. Uma diminuição que abrangesse os produtos fabricados dentro e fora da região seria fatal para esta, pois os preços no restante do País se igualariam aos das indústrias de Manaus, que já se beneficiam de imposto baixo por um tratamento diferenciado.
A bancada do Amazonas protestou, senadores Omar Aziz e Eduardo Braga à frente, o Solidariedade entrou com uma ação no STF e o ministro Alexandre de Moraes suspendeu os efeitos do decreto, no que se refere à diminuição de alíquotas do IPI sobre produtos que também sejam fabricados na Zona Franca, aceitando a alegação de que o encolhimento de alíquotas sem medidas compensatórias reduziria drasticamente a vantagem competitiva desse polo industrial e ameaçaria a sua continuidade.
A Coalizão Indústria reuniu-se com Guedes e, na discussão, ficou claro que havia três opções para o governo: fazer um acordo com o Solidariedade, esperar uma decisão do STF ou publicar um novo decreto do governo federal com redução do IPI, exceto para produtos fabricados na Zona Franca. O recuo do governo ficou claro no anúncio do novo decreto, que descartou tanto um acordo com o Solidariedade, que significaria aceitar uma decisão de Alexandre de Moraes, quanto uma decisão final do plenário da Corte. Assim, por razões exclusivamente eleitoreiras, o governo cede e acena aos industriais, onde sua base de apoio, supõe-se, não é tão ampla quanto na agroindústria. A medida de fim de governo é um alívio para um setor industrial que em dez anos perdeu 9,6 mil empresas e 1 milhão de postos de trabalho, enquanto no resto do mundo apostou-se em uma recuperação liderada por investimentos na indústria de alta tecnologia.
Às avessas. O imposto elevado restringe o consumo de roupas, calçados e eletrônicos. Em compensação, os donos de iates estão isentos de tributos – Imagem: Sebrae-SP e BR Marinas
O fato de a redução do IPI ser eleitoreira, um lance de oportunismo, não quer dizer que seja nociva para o setor. Ao contrário, a medida torna o produto industrial mais barato e tem efeito positivo para todas as cadeias de produção envolvidas. Economistas especializados em indústria ressaltam o grande impacto que a diminuição desse imposto teria, por exemplo, na produção de automóveis. O mercado de 2 milhões de carros por ano poderia aumentar para 2,5 milhões a 3 milhões de unidades, segundo estimativas.
A mesma perspectiva vale para produtos dos segmentos de vestuário, calçados, utensílios e alimentos industrializados, entre outros. O efeito é um maior crescimento da indústria, que passa a ter mais fôlego e presença mais significativa na economia. O oposto, portanto, do que acontece com a política econômica do atual governo, que promove a desindustrialização, fenômeno que há décadas solapa a economia do País e que tem como um dos efeitos o preço excepcionalmente elevado dos produtos industriais locais.
O governo sinalizou para a indústria que estaria preparando novas bondades, inclusive uma rodada adicional de redução de IPI, para aproveitar a elevação significativa da arrecadação geral proporcionada pela alta da inflação. O Ministério da Economia sabe que o sistema de impostos sobre consumo é muito sensível ao movimento inflacionário e tira partido dessa peculiaridade para agradar a vários setores, com propósitos apenas eleitorais e sem nenhum plano de crescimento ou desenvolvimento. Além de uma nova redução do IPI, ele acena com a depreciação acelerada não só para a indústria, mas para todas as empresas que investem. Isso permitiria às empresas abater o custo daquilo que teriam de pagar em Imposto de Renda.
Por estranho que possa parecer, a modificação do IPI confirma, para alguns, a intenção do governo de não fazer a reforma tributária, nem mesmo aquela que se restringe a uma simplificação do sistema de impostos e tributos. Um dos principais motivos para o que parece ser um recuo do governo em relação à promessa de reforma é que isso implica conflitos, por exemplo, com o agronegócio, no caso de se pretender arrecadar no setor um imposto um pouco mais elevado sobre o consumo. Outros problemas seriam a tributação do setor de serviços e a questão da Zona Franca de Manaus.
O incentivo surge após anos de atuação contra a indústria por parte do governo
O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Iedi, defende a reforma proposta pelo Centro de Cidadania Fiscal, que tem como eixo a substituição de cinco tributos atuais – IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins – por um único imposto sobre bens e serviços, o IVA – Imposto sobre Valor Agregado, de amplo uso no mundo, que no Brasil se chamaria Imposto sobre Bens e Serviços, o IBS. O resultado seria “um enorme ganho de produtividade e competitividade para as empresas brasileiras”, segundo o documento intitulado Uma Reforma Tributária em Prol da Competitividade, devido à complexidade da estrutura atual, ao alto grau de litígio e disputas judiciais que resultam em insegurança jurídica e menor investimento. Uma estrutura “pouco transparente e injusta, pois não tributa adequadamente as pessoas mais ricas do País, e desigual, devido a inúmeros benefícios fiscais e tratamentos diferenciados”. Alguns cálculos preveem que a simplificação de impostos proposta poderia proporcionar um salto de 10% a 15% para a indústria. Até mesmo a redução do número de impostos para dois, no máximo três, seria benéfica, segundo analistas.
Além da reforma tributária sobre o consumo, há necessidade de uma reformulação mais ampla, concordam vários setores. O economista Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp, defende, em uma reforma tributária abrangente, o estabelecimento de um ônus para desincentivar setores e processos intensivos em insumos não renováveis, poluidores e degradadores do meio ambiente e de incentivos tributários para ações que promovam a preservação e recuperação dos ecossistemas e estimulem o desenvolvimento de cadeias de produção e tecnologias sustentáveis. Uma alternativa seria transformar o IPI em um imposto seletivo com abrangência além dos produtos tradicionais, como os derivados do tabaco, bebidas alcoólicas e combustíveis fósseis, para alcançar outros produtos vinculados a comportamentos danosos ao meio ambiente e à saúde. As alíquotas do IPI seriam então zeradas para a maioria dos produtos e sua incidência se concentraria nos produtos vinculados às externalidades negativas.
A segunda possibilidade seria a transformação da Cide-Combustível em Cide-Ambiental. “Neste caso”, propõe Fagnani, “a contribuição ampliaria a base de tributação para grandes poluidores, setores intensivos em recursos não renováveis e grandes minerações, e teria vinculação com o financiamento das ações ambientais. Seria criada também a Cide-Saúde, com incidência sobre tabaco, bebidas alcoólicas e outros produtos danosos à saúde definidos em lei, com os recursos vinculados à saúde pública.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A enésima “bondade” “
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.