Economia
A conta vem depois
As amarras imaginadas pelo governo Bolsonaro dificultam a reversão da venda da Eletrobras


Jair Bolsonaro foi à Bolsa de Valores de São Paulo na terça-feira 14 para celebrar a segunda maior capitalização de uma empresa na história brasileira. Apesar da ocasião festiva para o “mercado” e os neoliberais do governo, o presidente ficou calado no evento, enquanto do lado de fora havia protestos contra o negócio que, na prática, privatizou a Eletrobras. Seria o silêncio presidencial uma demonstração de vergonha? Na eleição de 2018, o capitão se dizia “favorável a privatizar muitas coisas no Brasil, mas a questão energética, não”, por ser uma área “estratégica”, que não devia ficar em mãos privadas ou gringas com poder de “decidir o preço da nossa energia e onde no futuro chegará essa energia”. Não deve ter sido vergonha, não. O presidente, que desde a posse mente ao mundo da tribuna da ONU todo mês de setembro, ao abrir a Assembleia-Geral, parece desprovido de superego. Ademais, havia levado ele próprio ao Congresso a lei de privatização da holding de energia, em fevereiro de 2021, sinal de que mandara às favas as palavras do candidato.
Paulo Guedes, o ministro da Economia com grana em paraíso fiscal, estava falante na Bolsa. Foi a glória para o Chicago Boy, que sonhava com a entrega da empresa a particulares desde os tempos de colaborador clandestino do governo Collor, há 30 anos. “A maior geradora de energia limpa e renovável do mundo agora está livre”, tascou. Livre, segundo ele, para investir e crescer. Uma das razões alegadas desde o governo Temer para justificar a privatização era a falta de caixa da Eletrobras para investir. Curioso: de 2018 a março de 2022, a empresa acumulou lucros de 38,8 bilhões de reais.
A privatização tem vários dispositivos que buscam impedir uma reestatização, em caso de vitória de Lula (retomar a empresa é ideia estudada entre economistas da pré-campanha petista). Consumada, resta uma dúvida a ser desfeita. Quem será o manda-chuva? O 3G Radar, dos bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, que já detinha 10% das ações? Um fundo estrangeiro? No “mercado”, comenta-se que ninguém de peso do ramo energético entrou no negócio. A tendência é o controle ficar com senhores das finanças, situação capaz de empurrar a energia para o jogo da especulação, um dos motivos para futuras pressões por alta da conta da luz, apesar de o governo jurar que não haverá aumento de tarifas.
No primeiro dia da capitalização, protestos do lado de fora, Bolsonaro calado, Guedes exultante
Não foi uma privatização clássica, daí inexistir um comprador de rosto conhecido como havia na venda da Telebras, em 1998, maior desestatização brasileira, 91 bilhões de reais em cifras de hoje. A privatização da companhia elétrica resultou da capitalização festejada por Bolsonaro e Guedes. A empresa lançou 627 milhões de novas ações na Bolsa paulista e na praça de Nova York. O governo não podia comprá-las. Sua fatia na companhia caiu para cerca de 35%. Cada ação custou 42 reais, 23% acima do valor de dezembro passado e cinco vezes mais do que no dia da substituição de Dilma Rousseff por Michel Temer no poder, em maio de 2016. O preço fora definido pelo conselho de administração da empresa com base na quantidade de interessados em comprar papéis recrutados por um sindicato de bancos. A líder do sindicato era a XP, contratada sem licitação, empresa que encomenda pesquisas de intenção de voto e, para paparicar o governo, cancelou a divulgação do levantamento na semana anterior à capitalização. Bolsonaro, como se sabe, vai mal nas pesquisas.
O BNDES vendeu 69,8 milhões de ações que possuía da Eletrobras. Com isso, a privatização girou 29,2 bilhões de reais na Bolsa. Não é, porém, uma grana que irá para os cofres públicos. A quantia conseguida pelo banco de investimento, 2,9 bilhões, fica nos cofres da instituição. A obtida pela Eletrobras com as novas ações, 26,3 bilhões, encorpou seu capital social, agora de 65,4 bilhões. Aquilo que o governo embolsará na privatização virá da assinatura pela Eletrobras, até o fim do ano, de novos contratos de exploração de 22 hidrelétricas por 30 anos, um total de 25,3 bilhões de reais. A companhia terá de pagar outros 32 bilhões para subsidiar tarifas no futuro, dos quais 5 bilhões ainda neste ano. E investir 8,7 bilhões em obras no Rio São Francisco, na região de Furnas e na Amazônia em uma década. Tudo somado, 66 bilhões. “Preço de banana”, segundo o ministro do Tribunal de Contas da União Vital do Rêgo, para quem a Eletrobras valia o dobro.
Correm na Justiça algumas demandas contra a privatização. A Associação Brasileira de Investidores, a Abradin, move uma ação civil pública na Justiça estadual do Rio de Janeiro e chegou a conseguir uma liminar, cassada depois pelo Tribunal de Justiça fluminense. Representa acionistas minoritários e alega que eles foram prejudicados por preparativos da privatização. Itaipu e Eletronuclear foram tiradas da Eletrobras e repassadas a uma nova estatal, a ENBPar. Para a Abradin, o repasse merecia uma compensação aos acionistas.
Disputa. A energia tende a ficar mais cara. O senador Randolfe Rodrigues ingressou com ação popular contra a venda. Há outras demandas nos tribunais – Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado e Prefeitura de São José dos Campos/GOVSP
O senador Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá, entrou com uma ação popular na Justiça Federal em Brasília a argumentar que a capitalização da Eletrobras não poderia ter ocorrido antes da assinatura dos contratos de exploração das 22 hidrelétricas. A Associação dos Empregados de Furnas, a Asef, contesta na Justiça Federal do Rio a participação do BNDES na venda de ações. A Associação dos Empregados da Eletrobras, a Aeel, ajuizou um processo, que corre em segredo de Justiça Federal no Rio, a alegar que o presidente da empresa, Rodrigo Limp, e o ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, violaram a obrigação de ficar em silêncio nos dias que antecedem a venda de novas ações de uma empresa.
Na quarta-feira 15, a Aeel lançou um Livro Branco sobre ilegalidades, conflitos de interesse e erros na precificação da Eletrobras pelo governo. É um documento com um apanhado de situações que a entidade considera absurdas. Por exemplo, em uma reunião de janeiro do conselho de administração da Eletrobras, um representante do governo sugeriu que depois da capitalização a empresa poderia usar precatórios, ou seja, moeda podre, para pagar compromissos assumidos com o governo, como aqueles 25 bilhões pelas 22 hidrelétricas. A ideia, registrada na ata da reunião, partiu do então secretário-executivo-adjunto do Ministério de Minas e Energia, Bruno Eustáquio Ferreira de Castro Carvalho, atual número 2 na pasta da Infraestrutura. No “mercado”, há quem diga que tem investidor graúdo da Eletrobras privatizada com o cofre cheio de moeda podre.
Outro absurdo, segundo a Aeel, foi a omissão da Agência Nacional de Energia Elétrica quanto ao impacto da privatização na conta de luz. Impacto que virá não agora, mas após os novos contratos de exploração das 22 usinas. No governo Temer, a Aneel falava em alta de 16% na conta de luz. No de Bolsonaro, fugiu da raia. Em maio, o diretor-geral do órgão, André Pepitone, foi promovido a diretor-financeiro de Itaipu. Em 1o de junho, o superintendente de Gestão Tarifária da Aneel, Davi Antunes Lima, esteve em uma audiência pública com deputados e comentou que há, sim, risco de alta da tarifa, em razão de a lei da privatização ter imposto à Eletrobras o ônus de montar uma rede de usinas térmicas. Obrigação feita para atender aos interesses de um aliado do “Centrão” governista, o empresário Carlos Suarez, um dos fundadores da OAS.
Economistas da campanha de Lula estudam formas de devolver a companhia ao Estado
O encargo de investir em gás não é o único fator com potencial para pressionar a conta de luz. A lógica financeira, caso os novos controladores da companhia sejam do mundo das finanças, é outro fator. Idem o fim do regime de cotas, dispositivo criado no governo Dilma que fez com que o preço da energia da maior parte das usinas da Eletrobras fosse negociado no ano passado por algo em torno de 65 reais o quilowatt-hora. A privatização aboliu o regime. As empresas privadas que negociam livremente no mercado cobraram no ano passado cerca de 250 reais, em média. Um estudo de 2018 de três consultores do Banco Mundial, intitulado “Empresas de distribuição de eletricidade privadas versus públicas: os resultados são diferentes para os usuários finais?”, constatou: a conta de luz é, em média, 8% mais cara onde o setor é privatizado.
Eduardo Moreira, ex-banqueiro, acrescenta outra fonte de pressão tarifária. “O risco moral é gigante quando privatiza, porque este é um setor que é naturalmente um monopólio. Você tem uma linha de transmissão só, o dono sabe que o Estado está na mão dele, aí ele chega e diz: ‘Sei que a gente combinou de não aumentar o preço, mas é o seguinte, se não me deixar aumentar, não sei se vou te entregar a energia, vai ter um apagão’.” Um “risco moral” agravado na Eletrobras por uma regra, a poison pill imposta pelo governo aos estatutos da companhia pré-privatização, segundo Clarice Campelo, do Instituto Ilumina e do Grupo de Economia da Energia da UFRJ. Por essa regra, se um governo Lula quiser reestatizar, terá de pagar de 100% a 200% acima do valor pelo qual foi vendida cada ação (42 reais) na capitalização. Essa regra “enseja elevado risco moral”, diz Campelo, pois os donos da companhia podem agir de forma temerária que, em caso de reestatização para salvar a empresa (e o abastecimento da população), ganharão uma fortuna.
A lei da privatização tem outro dispositivo anti-Lula. O artigo 3o diz que nenhum acionista pode ter mais que 10% dos votos. Por isso, mesmo que o governo tenha 35% da companhia, como na Petrobras, não poderá dar as cartas. O mesmo artigo proíbe acordos de acionistas detentores de 10% das ações, uma forma de evitar que o governo pudesse participar da escolha do presidente, como ocorria na mineradora Vale.
Apesar da engrenagem anti-Lula, os economistas da pré-campanha petista estudam formas de reaver a Eletrobras. A premissa é que a energia pesa na inflação. No ano passado, a luz subiu o dobro do IPCA. Segundo um dos economistas, por ora aguarda-se o desfecho das ações judiciais contra a privatização. Se nenhuma der certo, a reestatização poderia ser feita via Petrobras e bancos públicos, como BNDES e Caixa Econômica Federal. O trio não teria o mesmo constrangimento político que o Tesouro Nacional de gastar uma bolada na compra de ações da Eletrobras. É esperar para ver. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A conta vem depois “
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