Economia

A combinação de austeridade fiscal e clientelismo afunda de vez a economia e o País

O Brasil voltou à idade da pedra lascada em matéria de política fiscal e monetária

Nau à deriva. Cheia de “puxadinhos”, a privatização da Eletrobras é um exemplo do casamento da austeridade com o clientelismo. Boa parte dos precatórios é oriunda de contestações judiciais de benefícios negados pelo governo
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Ponto de encontro da economia e da política, o orçamento da União expõe com grande nitidez, em especial no caso da peça elaborada para o próximo ano, as mazelas de um Brasil condenado desde o início da política de austeridade fiscal. “Não bastasse a austeridade, temos a sua mistura com o clientelismo, que é péssima.

Esse é um padrão observado no conjunto da política econômica do governo. Na medida em que ele perde credibilidade, os dois aspectos se misturam, no pior dos mundos. Em meio a um ciclo bastante ruim da economia, Brasília, diante de um ano eleitoral, quer fazer bondades com o orçamento”, alertou o economista Ricardo Carneiro, da Unicamp, em debate sobre o tema organizado pelo Instituto de Economia da universidade. Um exemplo eloquente dessa combinação é a privatização da Eletrobras. “Essa privatização é ruim e, além disso, foi feita com vários ‘puxadinhos’ que pioram ainda mais a situação.

É isso o que acontece com o conjunto da política econômica do governo, além dos danos decorrentes do perfil liberal, com todas as suas implicações negativas.” Na origem do atual fisiologismo está a suposição do governo, que não se confirmou, de que haveria um espaço fiscal muito maior de despesas não obrigatórias, no ano da eleição, por conta de uma presumida desaceleração da inflação acumulada até junho, utilizada para cálculo do ajuste do teto de gastos, o que abriria um espaço para gastos discricionários. Ocorreu o oposto, entretanto, pois a inflação acelerou e o governo perdeu essa folga. Além disso, os precatórios, parte deles gerada em virtude da austeridade, deram um salto e Brasília passou a cogitar o não pagamento de ao menos parte dessas dívidas judiciais de quitação obrigatória que vencem em 2022.

As chamadas emendas de relator são uma excrescência com dinheiro público

Segundo o economista Bruno Moretti, assessor do Senado, havia uma expectativa do governo de que o teto seria menos restritivo, por causa do seu fator de correção, dada a inflação de 12 meses até junho de 2021, de 8,35%. Imaginava-se um alargamento do espaço para gastos, que ficou, entretanto, comprometido pela evolução dos precatórios, de cerca de 55 bilhões de reais para 89 bilhões, em 2022, e também por um INPC que está acelerando e, segundo estimativas, pode chegar entre 8% e 9% no fim do ano, e é o índice que corrige os benefícios da seguridade social, Previdência, Loas, seguro-desemprego, e vai consumindo o espaço do teto.

O adiamento de parte dos precatórios abriria espaço, nos cálculos do governo, para uma despesa nobre, o aumento do Bolsa Família, rebatizado de Auxílio Brasil, e também “para despesas quase inacreditáveis, como as chamadas emendas de relator, uma excrescência, puro fisiologismo”, dispara Moretti. “Boa parte do Congresso move-se hoje em torno disso, que consiste em compra de voto feita não mais com dinheiro de caixa 2, mas com dinheiro público diretamente”, acrescenta Carneiro. As emendas de relator, que devem girar em torno de 20 bilhões de reais, “são recursos que não têm destinação definida, do ponto de vista de critérios objetivos, de equidade, nem entre parlamentares, tampouco entre regiões, municípios, estados, por isso ganharam o nome de orçamento secreto”, sublinha Moretti. Elas se diferenciam das emendas impositivas dos parlamentares, que fazem parte da previsão orçamentária e são constitucionais. Note-se que, apesar da excrescência das emendas de relator, mantém-se a aparência de que o teto não foi rompido e varre-se para debaixo do tapete mais um esqueleto, que é essa parte dos precatórios que não vai ser paga.

O teto de gastos não tem conseguido equacionar nem a questão das finanças públicas, sublinha Carneiro. O governo teve, desde 2016, déficits primários sistemáticos e isso aconteceu porque a economia não cresce. Fez-se um ajuste de despesa, mas a receita não cresceu o suficiente, portanto, se está reproduzindo um padrão de déficit primário, ou seja, com a regra do teto, “só se fez maldades, sem solucionar nenhum problema do ponto de vista da dívida pública”. É importante frisar o tamanho do ajuste feito, de 10% do déficit primário por conta da pandemia. No ano seguinte, ainda na pandemia, caiu para 2% e neste ano, vai cair para 1%.

“Qual é a perda de controle das despesas primárias do governo? Nenhuma. Quanto à dívida, deu um salto no início da pandemia, depois se estabilizou, até caiu um pouco. Não tem nenhum problema.” Do ponto de vista do perfil, a dívida encurtou um pouco em 2020, mas já voltou para o patamar anterior. Quanto ao custo da dívida, está em torno de 7,5%, no estoque da dívida. As emissões novas estão saindo a 6% ao ano,  abaixo da taxa de inflação. “Onde é que está o desequilíbrio fiscal que tem justificado elevações da taxa de juros e a pregação de austeridade?”, indaga Carneiro.

A dívida bruta caiu 5 pontos porcentuais de dezembro a julho, o que, segundo Moretti, desautoriza o terrorismo fiscal dos economistas convencionais. “Isso foi muito baseado no aumento do PIB nominal, mostrando a importância do denominador, que é sempre esquecido nessa conta, e em resgates líquidos da dívida.

Eu lembro sempre que, do ponto de vista da gestão da dívida pelo Tesouro, hoje há uma liquidez elevada.”

A situação do Tesouro é relativamente confortável do ponto de vista da gestão da dívida, avalia. Existem, portanto, condições econômicas para um programa de expansão fiscal, redemocratizando o orçamento e reconectando-o à função pública de instrumento de desenvolvimento e de fomento a políticas fundamentais para o período pós-pandemia. O que falta são condições políticas. “De alguma maneira, o regime de austeridade seletiva é uma ferramenta de desconstrução do Estado, da proteção social e do próprio sentido coletivo de objetivos estratégicos que o País possa vir a ter”, destaca Moretti.

A manifestação da austeridade no Brasil, acrescenta o economista Rodrigo Orair, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, tem um caráter seletivo e é na verdade uma falsa promessa. “É o teto de gastos vis-à-vis esse caráter seletivo que abre espaço para o fisiologismo”, diz. Outro problema, destaca Moretti, é que um conjunto de despesas sinaliza novamente impactos setoriais muito fortes. Há 1 bilhão de reais no orçamento para o CNPq, a preços de 2021, quando, em 2014, o montante para financiar pesquisa, custeio e investimento foi de quase 2 bilhões.

No caso da Bolsa Capes, havia cerca de 7 bilhões em 2014, mas a previsão para 2022 é de 2,4 bilhões. “Na Saúde, a situação é muito grave. Persistem necessidades da pandemia, de recursos adicionais para vacinação e uma forte demanda reprimida. Um total de 25% de procedimentos necessários deixou de ser realizado no primeiro semestre.

Isso pressionará o sistema em 2022 e é incrível, porque há uma redução, só nas despesas específicas de combate à pandemia, de 40 bilhões de reais no setor.” A saúde, na regra anterior, teria, no mínimo, mais 25 bilhões no orçamento de 2022 em relação ao que constou no Projeto de Lei Orçamentária Anual. “A previsão para gastos com vacinas estava em 3,5 bilhões de reais, mas fala-se que o mínimo é de 10 bilhões, ninguém imagina que no ano que vem não vai ter um programa de vacinação, então virá alguma coisa extraordinária para enfrentar os efeitos remanescentes da Covid”, acrescenta Orair.

Mais uma vez, os investimentos não contribuirão de modo significativo para a recuperação. Na hipótese de se programarem investimentos no mesmo porcentual de 2021, se chegaria a 0,4% do PIB no próximo ano, somando-se os recursos do Fundo de Arrendamento Residencial e do FGTS, do Minha Casa Minha Vida. “Isso é um terço do que se tinha, em proporção do PIB, em 2014”, sublinha Moretti. Os cortes na saúde tendem a repercutir negativamente para o governo. Como ficou evidenciado nos resultados eleitorais recentes na Argentina e no Peru, que, além do Brasil, estão no “trágico grupo dos dez países com índices per capita mais elevados de Covid”, cada governante será julgado pela eficácia com que se limitaram os danos da pior pandemia em um século, alerta a publicação Americas Quarterly, na edição de 20 de setembro. “Nos últimos 18 meses de negação, antagonismo e desatenção à crise, Bolsonaro parece ter convencido a maioria dos brasileiros de que ele é simplesmente incapaz de mantê-los seguros, uma opinião que eles não parecem inclinados a mudar”, sublinha o editor-chefe, Brian Winter.

O regime fiscal brasileiro, ressalta Moretti, não é só um regime de austeridade fiscal, ele é muito rígido e aplica as regras de austeridade para despesas que são estratégicas para o desenvolvimento, faz uma flexibilização seletiva, arbitrando quem está dentro e quem está fora, e comprime ainda mais o espaço dentro do teto para caberem despesas de cunho absolutamente clientelista. “Com isso, o orçamento público perde a conexão com problemas coletivos, desafios que o País tem, sobretudo, para o período pós-pandemia”.

A crise do Coronavírus escancara uma série de inconsistências, diz Orair, a exemplo da ausência de uma cláusula de escape unificada entre as regras fiscais. “É possível burlar o teto de gastos com crédito extraordinário, mas o crédito extraordinário é incompatível com a regra de ouro, que também está na Constituição. Há essa inconsistência. Enquanto o mundo inteiro está discutindo a pandemia e a resposta emergencial, o Brasil está negando a pandemia e várias outras coisas, mas também tem de mudar a Constituição para acomodar uma resposta emergencial à pandemia.”

Com dificuldades para comprimir despesas, o governo tenta aumentar as receitas, “e aí a reforma tributária encaixa-se como luva. Sua motivação prioritária é uma desoneração da classe média em ano eleitoral. O nome disso é ciclo político eleitoral”, destaca Orair.

“Essa questão fiscal, do espaço e do risco fiscais, está muito informada pelos modelos, pela forma do pensamento da economia convencional, que imagina que o Estado deve ser mantido o máximo possível em uma situação de neutralidade, de modo a não perturbar o funcionamento da economia em suas interações entre indivíduos racionais”, sublinha o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. O Estado aparece, portanto, como elemento perturbador. Na prática, todas as regras fiscais, à exceção dos momentos de necessidades urgentes, como no caso das crises de 2007-2008, e agora da pandemia, nos países desenvolvidos essas regras foram violadas, sem que houvesse nenhum escândalo.

O Brasil, acrescenta Belluzzo, está voltando à idade da pedra lascada em matéria de política monetária e política fiscal, que é algo disfuncional, como o mundo inteiro está mostrando. “As pessoas dizem que o Brasil é diferente, os EUA podem fazer expansão fiscal. O País é diferente por uma razão, por termos o problema da moeda não conversível, então ficamos muito sujeitos a choques externos.” Se os EUA subirem a taxa de juros, como estão prometendo para 2022, “nós vamos levar uma paulada também, e com a economia já moribunda. Fora o risco de que o quantitative easing comece a ser reduzido, como estão sinalizando para novembro, o que terá um efeito muito negativo no Brasil também”.

Segundo os debatedores, há alternativas que poderiam melhorar o regime fiscal e conectá-lo aos desafios do País. Em primeiro lugar, é preciso revogar o arcabouço fiscal vigente, para permitir um programa de expansão fiscal focado em gastos com elevado retorno econômico e social, retomando em alguma medida a ideia keynesiana de um orçamento de capital, que poderia ser feito desde que compreendesse despesas que, tecnicamente, são correntes, mas são fundamentais ao País como as de investimento no complexo técnico-industrial da saúde e na educação, entre outras.

Publicado na edição nº1177 de CartaCapital, em 30 de setembro de 2021.

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