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A antessala do fascismo

A italiana Clara Mattei explica por que as políticas de austeridade abrem caminho para regimes autoritários

A antessala do fascismo
A antessala do fascismo
O livro deve ser lançado no Brasil no fim deste ano – Imagem: INET New Economic Thinking
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As políticas econômicas de austeridade não se compõem só de medidas fiscais. É uma “trindade” formada ainda por juro bancário alto e privatização de bens públicos, diz a economista italiana Clara Mattei, que dá aulas de pós-graduação na New School Of Social ­Research, em Nova York. A perna fiscal da “trindade” costuma ser vista como cortes de gastos (daqueles a punir os mais pobres, claro), mas é mais que isso. Aliviar a tributação dos de cima e apertar a dos de baixo faz parte do pacote, segundo Clara.

Em 2022, ela lançou um livro com base em pesquisas sobre a ditadura inaugurada um século antes pelo conterrâneo Benito Mussolini. Na obra, expõe a seguinte conclusão: austeridade e fascismo andam de mãos juntas. O livro será publicado aqui em novembro, com o título A Ordem do Capital – Como Economistas Inventaram a Austeridade e Abriram Caminho para o Fascismo. Nos últimos dias, Clara participou, por videoconferência, de um seminário promovido em Brasília pelo Sindicato Nacional dos ­Auditores-Fiscais, o Sindifisco. E deu uma entrevista por escrito a CartaCapital.

CartaCapital: Por que a austeridade leva ao fascismo?
Clara Mattei: Historicamente, governos fascistas fortaleceram seu poder graças às políticas de austeridade, uma vez que obtiveram o apoio daquela elite econômica tecnocrática que favorece o restabelecimento dos “fundamentos econômicos adequados”, que são altas taxas de lucro e baixos custos trabalhistas. Ao mesmo tempo, a austeridade pode ser implementada de forma mais eficaz quando é um governo autoritário que a impõe. Quando discutimos austeridade, deveríamos entendê-la como uma “trindade de políticas”: fiscais, monetárias e industriais. Os americanos viram todas elas repetidas pelo governo em todos os níveis. Embora os salários nos EUA estejam estagnados há décadas, as 400 famílias mais ricas do país pagam uma taxa de imposto global mais baixa do que qualquer outro grupo de renda.

CC: Que exemplos históricos temos da associação entre austeridade e fascismo?
CM: O establishment liberal, tanto o internacional quanto o de dentro da Itália, desempenhou um papel substancial na consolidação da ditadura Mussolini, com apoio ideológico e empréstimos. Grande parte do aparelho liberal na ­Itália e na Inglaterra esforçou-se por apoiar ­Mussolini. Os principais meios de comunicação liberais, incluindo The Times e The ­Economist, juntamente com despachos da embaixada britânica em Roma e memorandos de dentro do Banco da Inglaterra, exprimiram, sem qualquer pudor, o seu alívio pelo governo Mussolini. Por quê? Ele foi superlativamente eficaz na imposição de políticas de austeridade, que beneficiaram investidores estrangeiros à custa da classe trabalhadora italiana. Mas não é uma exceção na história do capitalismo dos séculos XX e XXI. ­Milton ­Friedman foi o arquiteto da devastação econômica do Chile por ­Augusto ­Pinochet. A ­Economist apoiou o governo de Boris Yeltsin quando, em 1993, ele bombardeou o Parlamento russo para impor à oposição as suas reformas de austeridade.

Aliviar a tributação dos de cima e apertar a dos de baixo faz parte do pacote, alerta a economista

CC: O governo brasileiro tenta cobrar imposto de offshores, mas o Congresso resiste. A dificuldade de tributar os ricos é mundial. O que os países podem fazer?
CM: Esta é a trágica realidade da sociedade capitalista: tanto os Estados quanto as pessoas dependem do “humor” daqueles que detêm o capital. Os governos são assombrados pela perspectiva de fuga de capitais. É uma manifestação muito concreta da armadilha da coerção econômica que é típica do capitalismo e beneficia as elites, mas empobrece a maioria. É preciso haver manifestação popular para pressionar os governos a serem suficientemente corajosos para ir contra as regras do jogo e impor impostos aos ricos.

CC: O Brasil é um caso raro de país que cobra mais impostos do consumo do que da renda e do patrimônio. Qual a sua opinião?
CM: Infelizmente, o Brasil é apenas um caso mais extremo de uma tendência universal: a tendência de tributação regressiva. Tributar bens e serviços atinge a todos, mas o empregado de uma mercearia pagará muito mais da sua renda para comprar bens básicos do que o seu empregador. Os impostos sobre o consumo são, de fato, os mais regressivos de todos. É totalmente coerente com a lógica extrativista da austeridade. Tira renda dos trabalhadores e, por outro lado, aqueles que têm riqueza não são afetados. O imposto sobre heranças, por exemplo, está quase abolido na maioria dos países, para que a riqueza dos ricos possa ser transmitida às gerações futuras.

CC: Austeridade e neoliberalismo enfraqueceram trabalhadores e sindicatos. Há tentativas atuais de mudar a situação?
CM: A austeridade tem sido bem-sucedida na subordinação dos trabalhadores, mas esta não é uma característica permanente. Existem desafios constantes à ordem do capital, mesmo que a grande mídia não fale sobre eles. Nos EUA, ­país com austeridade estrutural, tem havido nos últimos anos formas novas e sem precedentes de mobilização laboral. Os trabalhadores da Amazon em Staten Island (distrito de Nova York) venceram uma batalha histórica de sindicalização, assim como os trabalhadores da Starbucks em mais de cem lojas e outros trabalhadores em muitas lojas de varejo. Em vez de instituições tradicionais de cima para baixo, sindicatos como a ALU (dos trabalhadores da Amazon) apresentaram uma estratégia que poderia fornecer um novo manual para o ativismo trabalhista do século XXI.

CC: Georgia Meloni prometeu, nas eleições italianas, melhorar programas sociais. É possível um governo neofascista investir no social?
CM: A Itália é um país onde os bilionários cresceram exponencialmente na última década (eram 13 bilionários na lista da Forbes em 2007, agora são 64), enquanto temos quase 1% da população em estado de pobreza extrema e 25% em pobreza relativa. Meloni segue os mesmos scripts de Mario Draghi, Mario Monti e Mussolini: austeridade severa. Ela acaba de eliminar o subsídio para os pobres Reddito di Cittadinanza (espécie de Bolsa Família), deixando 170 mil pessoas sem meios para chegar ao fim do mês, está cortando impostos dos ricos e fala em mais “rigor fiscal”. Gasta, porém, muito dinheiro para armar a Otan. A ideia de que o fascismo de Mussolini fez reformas sociais para o povo é em grande parte um mito. O mesmo se aplica a Meloni. •

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A antessala do fascismo’

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