Do Micro Ao Macro
Terapia sem caos
Aplicativo reúne dados, metas e registros clínicos para organizar o cuidado de crianças com autismo
A mãe entra em casa ainda com a pasta de laudos e relatórios debaixo do braço. Sobre a mesa, a planilha impressa com os horários da semana, uma sequência de siglas que parecem vir de outro idioma: terapia ocupacional, fonoaudiólogo, psicóloga, terapia ABA, integração sensorial, atividades escolares adaptadas. O filho, de 4 anos, tem indicação médica para realizar diversas atividades e ela tenta conciliar agendas, organizar deslocamentos, entender o que cada profissional observou na sessão anterior e como isso se traduz em algum avanço possível. Entre a ansiedade de perder compromissos e o receio de não acompanhar tudo o que o menino precisa, surge a pergunta que tantas famílias se fazem: como administrar todo esse processo?
Essa cena é comum entre responsáveis por crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O Brasil tem 2,4 milhões de habitantes com esse diagnóstico, segundo o Censo 2022 do IBGE. O número dá a dimensão do desafio, mas diz pouco sobre a rotina de quem tenta coordenar atendimentos fragmentados, laudos dispersos e informações que não se conectam. Em muitos casos, cada profissional mantém registros próprios, a escola possui outro, o plano de saúde exige comprovações e relatórios, ameaça não pagar, e o cotidiano converte-se em uma operação logística complexa, conduzida entre grupos de WhatsApp e arquivos que nunca parecem completos.
Foi a partir desse desafio que a NeuroSteps, criada há pouco mais de dois anos em Florianópolis, desenvolveu uma plataforma que reúne em um ambiente digital o plano terapêutico de cada paciente. O sistema registra metas, organiza evidências, apresenta indicadores e conecta todos os envolvidos no cuidado: famílias, clínicas, escolas e operadoras de saúde. Para a mãe que tenta fazer com que tudo caiba na mesma semana, a rotina muda. Ela passa a receber no celular a agenda do dia, as atividades sugeridas, a evolução apresentada em gráficos e as metas definidas pelo time clínico.
“Queríamos que as decisões fossem guiadas por dados, não por tentativas dispersas”, diz o fundador e CEO, Ivan Junckes Filho, profissional com mais de 15 anos de experiência em tecnologia aplicada à saúde. Um dos fatores que motivaram a criação da empresa foi a dificuldade que muitas clínicas enfrentam para mensurar resultados de terapias especiais. A falta de informações estruturadas compromete a confiança das famílias e eleva o custo para as operadoras de saúde, que precisam compreender o impacto real do tratamento. “A área assistencial reúne muito conhecimento técnico, mas ainda usa poucos registros padronizados. Buscamos mudar essa realidade.”
A plataforma opera com base em protocolos reconhecidos na área, que auxiliam na avaliação de habilidades de linguagem, interação social, motricidade, leitura, comportamento e outras dimensões essenciais do desenvolvimento infantil. A cada sessão, o profissional registra as tentativas e as respostas do paciente, indicando se houve avanço ou necessidade de ajustes. O sistema converte esses dados em indicadores visuais e cria uma linha do tempo que acompanha a trajetória da criança ao longo dos meses.
A plataforma da NeuroSteps integra famílias, escolas, clínicas e planos de saúde em um único sistema
Para a família, isso aparece no aplicativo em tarefas simples, como repetir um exercício recomendado pela terapeuta ou estimular determinada habilidade em casa. Para as escolas, há um espaço destinado ao registro de observações do dia a dia: comportamentos, interações, avanços em sala de aula. As clínicas, por sua vez, têm acesso a painéis administrativos que mostram produtividade, assiduidade, desfechos e pontos de atenção. Já as operadoras de saúde visualizam um panorama mais nítido dos custos, do uso adequado dos serviços e da evolução dos pacientes, o que traz mais transparência e reduz conflitos na aprovação de procedimentos.
No Rio Grande do Sul, Viviane Reis, gestora de uma clínica especializada, descreve o novo cenário como um processo contínuo de análise. Segundo ela, atividades que antes exigiam horas de revisão agora estão automatizadas. “O acesso em tempo real à evolução dos pacientes nos ajuda a tomar decisões clínicas mais rápidas”, relata. Outro efeito foi administrativo: grande parte do tempo antes dedicado à produção de relatórios foi redirecionada para atendimentos e planejamento.
O crescimento da NeuroSteps é um reflexo da boa aceitação do aplicativo. A empresa já está presente em 12 estados e ampliou em seis vezes seu número de usuários em 2025. A meta de alcançar todo o País nos próximos anos apoia-se na própria natureza do problema que pretende enfrentar: a fragmentação dos dados. Para Ivan, integrar informações significa aproximar pessoas. “Conectar família, profissionais e escola é criar um ecossistema de cuidado. É onde surgem decisões mais claras”, diz.
Apesar de ter nascido com foco inicial no autismo, a plataforma também atende crianças com outros transtornos do neurodesenvolvimento, como TDAH, Síndrome de Down ou dislexia, condições em que o minucioso acompanhamento da evolução dos pacientes é tão importante quanto no TEA. A lógica é a de garantir que o desenvolvimento deixe de depender apenas da memória de cada profissional e passe a ser resultado de registros contínuos, acessíveis e comparáveis.
Os responsáveis pelo cuidado dessas crianças encontram no aplicativo uma forma de acompanhar o que antes dependia de reunir fragmentos. No lugar das planilhas soltas, há uma linha de progresso. Não há mais dúvidas que ficam para a próxima sessão: as metas estão claras e acessíveis. O sistema organiza o cuidado e devolve previsibilidade ao cotidiano.
Para Ivan, esta é a base da proposta. “Quando conseguimos medir avanços, abrimos espaços para decisões mais acertadas”, afirma. A tecnologia, nas mãos das famílias, não substitui o vínculo, mas aproxima todos os envolvidos. E ao integrar o que antes estava disperso, transforma a jornada terapêutica em algo mais coordenado, menos solitário e doloroso. •
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Terapia sem caos’
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