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Profissões sob pressão: o avanço da inteligência artificial e o desafio das leis trabalhistas
Especialistas apontam que a automação já altera a rotina de diversas categorias e que o direito ainda busca respostas para novos tipos de responsabilidade.
A inteligência artificial já redefine a organização do trabalho em todo o mundo. Em áreas que lidam com informação e repetição, o impacto já está em andamento, enquanto profissões que exigem habilidades manuais ou contato físico tendem a sofrer menos alterações.
De acordo com um levantamento da Microsoft, divulgado em setembro de 2025, as atividades mais suscetíveis à automação estão ligadas à linguagem, comunicação, análise de dados e produção de conteúdo. O estudo indica que a tecnologia não substitui de forma direta o trabalho humano, mas altera sua forma de execução e exige novas competências.
Impacto nas profissões
Para Taciela Cordeiro Cylleno, juíza titular da 9ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, as mudanças atingem com maior intensidade as funções baseadas em padrões. “As áreas mais vulneráveis são as que lidam com tarefas repetitivas e padronizáveis, porque a inteligência artificial aprende justamente com a repetição”, explica.
Segundo ela, a questão central não é a substituição total do trabalho humano, mas a adaptação. “A dúvida não é se a IA afetará o seu emprego, e sim em que medida. Poucas funções deixarão de existir, mas muitas serão modificadas”, afirma.
Ainda conforme Taciela, a resposta mais urgente está na educação. “O diferencial continuará sendo humano: pensamento crítico, empatia, ética e criatividade. É necessário preparar as pessoas para lidar com a tecnologia de forma consciente”, diz.
Lacunas jurídicas
Enquanto as empresas ampliam o uso da inteligência artificial, o direito tenta acompanhar as transformações. O advogado André Dantas, especialista em Direito Público e processo legislativo, observa que o principal desafio está na definição de responsabilidade. “A tecnologia evolui em ritmo superior ao das leis. Ainda há dúvidas sobre quem responde por falhas, vieses ou discriminação: o programador, a empresa ou o gestor que aplica a ferramenta?”, questiona.
O Projeto de Lei 2.338/2023, atualmente em análise no Congresso Nacional, busca estabelecer um marco legal para a inteligência artificial no Brasil, inspirado em diretrizes da OCDE e da União Europeia. O texto trata de transparência, segurança e responsabilidade, mas ainda não abrange situações específicas do ambiente de trabalho.
Taciela lembra, porém, que princípios já existentes continuam válidos. “A dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho seguem sendo parâmetros. Mesmo sem regulação detalhada, há responsabilidade. As empresas devem evitar práticas que gerem discriminação, vigilância abusiva ou precarização das relações”, afirma.
Supervisão e transparência
Com o uso crescente de algoritmos em decisões internas, a transparência torna-se elemento central. Segundo os especialistas, é dever das empresas informar de maneira clara quando sistemas automatizados influenciam contratações, promoções ou salários.
Dantas destaca que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) assegura o direito à revisão humana em decisões automatizadas. No entanto, a aplicação prática ainda é limitada. “A segurança jurídica depende mais da conduta ética das empresas do que do texto da lei. Muitos gestores implementam tecnologia sem compreender os riscos jurídicos envolvidos”, avalia.
Taciela reforça a necessidade de manter o julgamento humano como referência. “A adaptabilidade e o aprendizado contínuo são formas de proteção. O desafio é utilizar a inteligência artificial com responsabilidade e propósito social”, pontua.
Requalificação e políticas públicas
Os dois especialistas concordam que o avanço tecnológico precisa ser acompanhado por políticas públicas de requalificação e programas corporativos de atualização profissional. “É preciso estabelecer regras sobre responsabilidade civil e trabalhista no uso de IA, mas também criar incentivos à capacitação de quem será impactado”, observa Dantas.
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que um em cada quatro empregos no mundo está potencialmente exposto à transformação pela inteligência artificial generativa. Para Taciela, a estatística reforça a urgência de um novo modelo educacional. “A formação deve evoluir junto com a tecnologia, para que o futuro do trabalho continue sendo humano”, diz.
Justiça e governança digital
O uso de inteligência artificial também começa a influenciar a rotina do Judiciário. De acordo com Taciela, há discussões sobre a adoção de ferramentas de IA para análise de jurisprudência, gestão de processos e apoio a decisões. “A tecnologia pode servir de apoio, mas o julgamento deve permanecer humano. O magistrado é o responsável final por cada decisão”, afirma.
Por fim, Dantas destaca a importância de práticas de governança e compliance digital nas empresas. “Com o uso crescente de algoritmos em contratações e demissões, será indispensável criar políticas internas de auditoria e rastreabilidade. Quem não conseguir comprovar que adota boas práticas jurídicas e éticas poderá enfrentar questionamentos e sanções”, conclui.
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