Do Micro Ao Macro
Inclusão financeira
O Banco da Família aposta em franquias de microfinanças para expandir sua atuação pelo Brasil


Ana Paula Oliveira, a Dinda, de 46 anos, risca o molde à mão, confere as medidas e separa os pedaços de pano como quem monta um quebra-cabeça. O recurso para comprar os primeiros insumos – 500 reais – veio de uma linha de microcrédito. Duas semanas depois, uma amiga costureira reforçou a produção e, em seguida, outra assumiu as vendas. Nos dois primeiros meses, o faturamento fechou em 1.680 reais. Foi apenas o empurrão inicial, comenta a empreendedora. “Comprei o tecido, terceirizei a costura, pedi ajuda para revender. Queria avançar juntamente com outras mulheres”, afirma Dinda. Os erros do começo – como o uso de um molde importado, com medidas fora do padrão nacional – viraram ajustes de rota. Agora, o grupo prepara uma nova leva, com um diferencial: pijamas infantis que a criança pode pintar, lavar e pintar de novo, ideia nascida em uma reunião de capacitação.
A cena resume o que o microcrédito pode fazer quando encontra método e proximidade. Mais do que uma aposta aleatória, trata-se de uma ferramenta de inclusão financeira e de fortalecimento socioeconômico, capaz de alcançar quem não cruza a porta do banco tradicional. Esse tipo de financiamento gera renda, possibilita a abertura do primeiro CNPJ e injeta dinamismo nas economias locais. Quando orientado, ainda reduz o risco de inadimplência e amplia as chances de o recurso virar empreendimento.
No município catarinense de Lages, o Banco da Família nasceu em 1998 com foco no trabalho de base. Hoje, está presente em mais de 300 cidades da Região Sul e estima já ter beneficiado 1,8 milhão de habitantes, com quase 2,9 bilhões de reais em crédito concedido. Em 2024, a MicroRate reconheceu a instituição como a melhor do Brasil e uma das cinco mais bem avaliadas no mundo. O diferencial, explica a presidente Isabel Baggio, está na forma de atuação: “É crédito assistido. Vamos à casa, ao ponto de venda, olhamos a renda da família e desenhamos um valor que caiba no bolso. A visita é indispensável”.
A metodologia combina orientação financeira, acompanhamento constante e um cardápio de soluções que vai além do capital de giro. Há linhas específicas para reforma habitacional, energia solar e meio rural, além de serviços de saúde e educação. “Fomos do microcrédito às microfinanças, porque as necessidades do cliente não cabem numa única caixa”, diz Baggio. O resultado aparece na baixa inadimplência. “Por lei, nosso juro deve ser inferior a 4% ao mês, mas praticamos taxas bem abaixo disso. O cuidado reduz o risco. Não empurramos um valor que o cliente não consegue pagar.”
Foi assim que a Rede de Mulheres ganhou corpo. Hoje, são quatro grupos ativos – Mulheres Vencedoras, Mulheres de Poder, Mulheres Corajosas e Mulheres Superpoderosas – com 36 participantes. O início se dá com valores pequenos, entre 300 e 1.000 reais, e ciclos curtos, em média de quatro meses. Cada integrante toma seu crédito individualmente, mas o pagamento é solidário. Nas reuniões mensais, discutem temas como gestão, precificação, marketing, educação financeira e, principalmente, promovem a troca de experiências.
“Embora o financiamento seja o ponto de partida, a transformação vai além. A solidariedade e o apoio coletivo dão confiança e ampliam perspectivas”, afirma a diretora-administrativa Geórgia W. Michielin Schmidt. A metodologia foi inspirada nas bancas comunais, com consultoria da Fundación Paraguaya e apoio financeiro da Locfund na fase piloto. A regra é avançar em passos possíveis. “No ciclo seguinte, ela pode acessar 500 reais. Quando o negócio amadurece, pensamos na formalização. Antes disso, a prioridade é construir segurança”, explica Baggio.
Com presença em mais de 300 cidades da Região Sul, a instituição foca no apoio a pequenos empreendedores
Dinda, presidente do grupo Mulheres Corajosas, virou referência. “Minha amiga Carla costurou, outra revendeu, e agora a Carla já chamou novas vendedoras. Ver outra mãe solo trabalhar me fez muito bem. As reuniões me inspiraram a empreender e a puxar outras”, conta. A rede também passou a conectar o crédito a microfranquias de produtos locais – como bolachas e temperos – por meio do projeto Produtores da Serra, uma estratégia para tracionar vendas com curadoria e ponto de exposição.
Essa proximidade cria um tipo de compromisso que não se vê no crédito impessoal. “Muitas mulheres dizem: ‘Nunca tive coragem de pedir crédito’. Quando o primeiro empréstimo chega e funciona, nasce um vínculo de confiança”, afirma Baggio. A instituição também atua na reorganização de dívidas com juros altos, sempre que há espaço para substituí-las por contratos mais acessíveis.
Para ampliar seu alcance, o Banco da Família lançou um modelo de franquias. O investimento estimado é de 150 mil reais e inclui treinamento, suporte técnico, sistema próprio, layout padronizado e acesso a uma carteira de crédito estruturada. Cabe ao franqueado a captação de clientes e o relacionamento direto. Já a análise e a liberação do crédito ficam sob responsabilidade da matriz. “A expansão por franquias é um caminho para levar nossa metodologia a novas regiões com eficiência”, afirma Schmidt.
Além da operação diária, a instituição atua pela qualificação do setor por meio da ABCRED, a associação que representa os operadores de microcrédito. A agenda inclui fundos garantidores, ajustes regulatórios e o reconhecimento das microfinanças como política pública de desenvolvimento. Um dos pontos em debate é ampliar a destinação dos recursos obrigatórios, permitindo também seu uso em melhorias habitacionais, saneamento e pequenas reformas.
“O Brasil tem déficit habitacional e lacunas de saneamento. Às vezes, 8 mil reais resolvem um problema real. É um valor menor, mas que transforma a rotina de uma família”, resume Baggio. A defesa é por maior coordenação entre as políticas de assistência social e inclusão produtiva. “Os programas precisam conversar entre si”, acrescenta a presidente do Banco da Família. O recado é claro: microfinanças não substituem a rede de proteção social, mas ativam trabalho e renda onde o mercado formal não chega.
No fim do dia, o que sustenta o ciclo é a combinação de crédito, conhecimento e rede. Dinda aprendeu a ajustar o molde e a margem. Outras incorporaram técnicas de venda e registro de custos. As reuniões deram vazão a ideias simples, de baixo investimento e giro rápido. No bairro, esse movimento aparece nas pequenas placas, nas encomendas por mensagem, na conta que fecha sem apertar. Empreender, nesse caso, não é frase de efeito. É o primeiro rolo de tecido comprado com um empréstimo de 300 ou 500 reais. É a costura que vira renda. A revenda que amplia o alcance. E a certeza de que, em grupo, a caminhada fica menos íngreme. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inclusão financeira’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.