Rosane Borges

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Jornalista, pós-doutorada em ciências da comunicação, professora colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda (ECA-USP), integrante do grupo de pesquisa Teorias e práticas feministas (Unicamp/Usp), conselheira de honra do grupo Reinventando a educação. Autora de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).

Opinião

Violência sexual, #MeToo e direito dos homens de importunar

Não tenhamos dúvidas: nesse embate discursivo entre as francesas e as americanas, fiquemos com as americanas

O que está em jogo não é a disputa entre liberdade sexual e puritanismo retrógrado
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As campanhas #MeToo e #Time’s up, que ganharam impulso a partir dos escândalos envolvendo o produtor Harvey Weinstein, magnata de Hollywood, “moderno imperador do cinema independente” (epíteto atribuído anos atrás), acusado de assediar sexualmente várias atrizes e de estuprar tantas outras, desencadeou nos últimos dias uma cascata de discussões que orbitou em dois polos.

De um lado, mulheres de várias partes do mundo se perfilaram à campanha, partidárias da ideia de que abusadores devem ser denunciados pelos crimes que cometem, muitos ainda praticados impunemente; de outro, mulheres enxergando nas campanhas uma caça às bruxas sem precedentes, uma vez que jogam na vala comum da escória e do crime os homens que se “excederam” nas abordagens de cunho sexual.

A cereja do bolo, ao que parece, foi o discurso emocionante e contundente da apresentadora Oprah Winfrey. Na premiação do Globo de Ouro, onde mulheres e homens vestiram-se de preto em apoio às vítimas de assédio, Oprah se levantou contra a violência sexual e o racismo, exortando a plateia a combater essas duas chagas. Emocionou. Provocou raiva e choro.

No dia seguinte à fala de Oprah, um manifesto assinado por uma centena de personalidades francesas destilou críticas acerbas às campanhas, acusando-as de flertar com a moral vitoriana, de pactuar com o puritanismo, de surfar numa onda purificadora, estimulando a perpétua vigilância da esfera íntima, traço comum das sociedades totalitárias. O libelo foi publicado pelo jornal francês Le Monde.

O manifesto das francesas defendia ainda o direito de importunar, indispensável para garantir a liberdade sexual, conquista obtida arduamente por nós, mulheres. Entre os nomes que assinaram o documento estavam, nada mais, nada menos: a atriz Catherine Deneuve, a escritora Catherine Millet, a cantora Ingrid Caven, a editora Joëlle Losfeld, a cineasta Brigitte Sy, a artista Gloria Friedmann e a ilustradora Stéphanie Blake.

A tréplica veio na velocidade da luz. A feminista Caroline de Haas encabeçou a produção de um artigo publicado no site da emissora de rádio France Info. Nele, expoentes do feminismo desferiram duros golpes aos argumentos das francesas, lamentando o fato de elas “reincidirem no uso de sua visibilidade midiática para banalizar a violência sexual”. Não somente as feministas se encarregaram de montar a tropa de choque. Intelectuais e políticas avolumaram a contraofensiva, não sem razão, com tiro, porrada e bomba.

A historiada Michele Perrot acusou as celebridades de falta de solidariedade com quem sofre abusos sexuais. A secretária de Estado pela Igualdade do governo Macron, Marlène Schiappa, e ex-ministras, como a socialista Segolène Royal, criticaram tanto a forma como o conteúdo de um discurso tido como “perigoso”.

Em uníssono, essas mulheres apontaram para o centro do problema instaurado #Pelo direito de importunar: embaralha ato de sedução baseado no respeito e o prazer com um ato violento. Concebe o assédio como gradação do flerte, uma progressão descuidada da paquera: “não se trata de uma diferença de gradação entre o flerte e o assédio, mas de uma diferença de natureza. A violência não é uma sedução aumentada.”

A defesa de homens por mulheres

Sem sombra de dúvidas, mora nessa diferença crucial entre assédio e flerte a legitimidade das campanhas #Me too e # Time’s up. É no coração daquilo que define assédio, violência, uso abusivo de poder que essas campanhas ganham lastro no tecido social, estimulando muitas mulheres a falarem sobre as violências que sofrem em diversos ambientes.

Sabemos que as questões que envolvem sexualidade e prazer não repousam em um longo rio tranquilo, onde cada uma viria pescar sua verdade. É um mar em que opções se enfrentam, em que correntes se opõem e se encontram. Ter disso ciência não significa, contudo, desconsiderar que as relações patriarcais, a violência que move práticas machistas e sexistas ainda são a argamassa que cimenta as relações pessoais e sociais entre mulheres e homens, a despeito das conquistas que tivemos.

As senhoras francesas partem do entendimento de que os avanços obtidos por obra do feminismo nos colocam em posição simétrica em relação aos homens, numa dinâmica em que teríamos agência para tudo, inclusive para dizer não quando eles se “excedem” ou “passam dos limites”. Essa premissa passou recibo para as práticas violentas de homens como se exagero fossem, ofereceu elementos para o salvo conduto, o habeas corpus que muitos deles esperavam, Harvey Weinstein principalmente.

Hollywood não é só glamour. Disso sabemos todos. A prática do casting couch – sexo de produtores com atores e atrizes em troca de papeis virou tradição no ambiente estelar. Era nele que Weinstein agia prostituindo artística e economicamente cinema indie, se firmando como um predador dos negócios que administrava, como relata o jornalista Gregorio Belinchón. Com os escândalos sexuais que protagonizou, ficou confirmado que essa característica se estendeu também para as relações forçadas com mulheres que contratava para os filmes.

Resta no mínimo curioso que não foi preciso outros homens para defender os agressores confessos (os machos fizeram cara de paisagem, orquestraram um silêncio sepulcral), já que mulheres com reconhecimento mundial saíram rapidamente na dianteira, tentando, lamentavelmente, desqualificar um movimento legítimo que, ao modo de GPS, localiza o fundamento da violência que subalterniza e desumaniza milhares de tantas outras.

Seja por pressão social ou por um lampejo de lucidez, a atriz Catherine Deneuve pediu desculpas públicas por ter assinado o documento, salientando que ele foi manipulado posteriormente e que não subscreve a violência contra mulheres (para ela, o tom final do texto escapou das motivações iniciais que a fizeram aderir). Recorreu a sua biografia de vida para ratificar a sua posição final.

Não tenhamos dúvidas: nesse embate discursivo entre as francesas e as americanas, fiquemos com as americanas. O que está em jogo nestas campanhas e manifestos não é a disputa por valores polarizados (liberdade sexual versus puritanismo retrógrado), mas a ofensiva contra uma das faces mais perversas de subjugação com fundamento de gênero. A polarização existe, porém, em nossos tempos, reside noutra trincheira.

PS: Parece piada pronta, como comentei com um amigo querido. Nestes dias, enquanto escrevia este artigo, saí para o supermercado. No caminho, encontrei um homem aparentemente solícito que se dirigiu a mim para pedir informações de um endereço. No que vou responder, eis que me deparo com o homem solícito com o pênis ereto para fora da calça, falando impropérios. Relatos como este, nós, mulheres, escutamos aos borbotões. O contrário, de mulheres expondo sua genitália publicamente para homens, ainda não chegou até a mim.

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