Cultura

‘Titane’: Manifesto de gênero provocador e dilacerante

Primeiro filme dirigido por uma cineasta mulher a ganhar a Palma de Ouro em Cannes aterrissa na 45ª Mostra Internacional de São Paulo

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I’m bulletproof, nothing to lose (Sou à prova de balas, nada a perder)
Fire away, fire away (dispare à vontade, dispare à vontade)
Ricochet, you take your aim (ricochete, pode mirar)
Fire away, fire away (dispare à vontade, dispare à vontade)

You shoot me down, but I won’t fall (se me atingir, eu não caio)
I am titanium (eu sou de titânio)

— David Ghetta featuring Sia.

Os versos acima cantados pela famosa intérprete Sia e lançados em 2011 já metaforizavam sobre esta forte mulher que costuma ser alvo de várias perseguições da sociedade, mas que, no fundo, jamais seria derrubada, só a tornando mais forte. Pois, enfim, chega um filme em 2021, dez anos depois, que praticamente adapta de modo livre esta letra para o cinema, num manifesto de gênero dilacerante e atual.

Está em cartaz na 45ª Mostra SP a vencedora da Palma de Ouro do 74º Festival Internacional de Cinema de Cannes, Julia Ducournau, com seu longa-metragem “Titane”, tendo sido o segundo filme dirigido por uma cineasta mulher a ganhar a láurea máxima da Croisette, bem como a primeira vez em que ganha de modo solo (já que da vez anterior, em 1993, Jane Campion ganhou por “O Piano” dividindo com Chen Kaige por “Adeus, Minha Concubina”).

Se competidores à Palma de Ouro costumam conter polêmicas por si só, esta ganhadora será ainda mais incômoda e intencionalmente chocante, devendo-se um alerta para se preparem para o que irão ler na sequência dos próximos parágrafos.

Parece que a cada 5 minutos a diretora deseja provocar ou mesmo causar, mas a grande questão é se tal força centrífuga seria justificada ou bem fundamentada para não soar como mero sensacionalismo. Afinal, é por causa de uma suposta ânsia de vômito que algumas pessoas sentiram a necessidade de polarizar opiniões e debates – o que é ótimo, já que unanimidades podem tender a lugares comuns.

E nem seria a primeira vez que a diretora teria gerado reações calorosas… Em seu longa-metragem anterior, a obra-prima “Raw” (2016), burburinhos de pessoas desmaiando na sessão em mostras competitivas internacionais já marcaram a trajetória do filme de maneira mais escandalizante do que por seus devidos méritos. Lá, estávamos numa história familiar sobre ritos de passagem e “coming of age” de jovens mulheres a partir de um matriarcado recuperado com unhas e dentes afora da sociedade patriarcal, numa metáfora da grande cadeia alimentar de poder.

Mas e aqui, no novo “Titane”? Sim, a mesma direção plasticamente perfeita se pronuncia, com quadros marcantes, tanto para maravilhar quanto para chocar e até repelir. Mas a história pede por isso… Sabem como os carros sempre foram vendidos nas propagandas e no imaginário do senso comum como extensões do homem? E que dificilmente vemos publicidades voltadas para as mulheres? Muito pelo contrário, já que mulheres costumam ser associadas aos carros como posse do homem no velho pensamento chauvinista publicitário?

Então, neste exemplar, veremos uma famosa modelo, Alexia (a revelação Agathe Rousselle), que vendia várias propagandas de carro com seu corpo e sua sensualidade… Mas ela não o fazia para os homens, e sim para si mesma, considerando o carro uma extensão dela própria, como se o titânio dos veículos contemporâneos pudessem vazar e torná-la de ferro contra tudo e contra todos. E nada mais deve ser dito sobre a trama para não dar spoilers.

Cenas impactantes demonstram a emancipação referida desde o princípio, como a bem filmada relação sexual entre a mulher e seu carro, bem como vários homicídios que serão cometidos dentro ou fora do veículo. Não que isto já não tenha sido visto, como em clássicos do porte de “Christine – O Carro Assassino” de John Carpenter ou no mais recente Cult brasileiro multipremiado “Carro Rei” de Renata Belo Pinheiro, havendo diálogos importantíssimos entre esses longas-metragens. Contudo, o que pode coincidir com a ousadia, excede aqui na receita do caos e da violência imprevisível.

Não serão poucas cenas a causar repulsa no espectador casual – ainda mais se considerando a diferença de gênero na própria plateia entre homens e mulheres, pois, mesmo com cinéfilos acostumados ao “gore”, não costumam ver isso ser cometido por mulheres de forma tão crua e direta. Sem rodeios.

A cineasta francesa Julia Ducournau. Foto retirada de sua conta no Instagram.

Cinéfilas antenadas com questões de identidade de gênero na sociedade moderna possivelmente vão reagir com muita naturalidade para algumas analogias do filme com a desconstrução da masculinidade tóxica, o que vem demonstrando o quanto os homens não estão preparados para falar sobre abrir mão de seus privilégios até mesmo nas narrativas cinematográficas, como: por que não há mais filmes de terror protagonizados por mulheres como serial killers ou as assassinas no final? Por que mulheres continuam servindo de sacrifício humano para o entretenimento da sétima arte e não vemos homens suando um pouco ao correr por suas vidas?

Há de se ressaltar que, independente da estética primorosa e das características emprestadas do cinema de terror e fantástico, ainda que de forma excessivamente explícita às vezes, o filme de fato começa a engajar as pessoas após os 30 minutos quase que contínuos de pura tortura e carnificina – ao menos na visão deste crítico que vos escreve.

É sim admirável a construção imagética e desenvolvimento de personagem que a diretora alcança com quadros marcantes como um contra-plongée nas costas da silhueta da protagonista contra o fogo que irá consumir sua casa natal, ou mesmo a impressionante sequência em que a mesma personagem senta com um banco na cara de um homem, filmada em contra-zenital, como se estivéssemos olhando a partir do chão… E até a cena do nariz quebrado, crucial para a confusão de gênero que vai ocorrer quando Alexia mudar de nome para Adrien. Tudo isso desenvolve mais do que qualquer palavra ou diálogo. Mas não seria o suficiente caso não fosse construída uma relação muito mais irresistível depois disso tudo.

É a partir dos 40 minutos de projeção que entra o coadjuvante de luxo interpretado magistralmente de modo obcecado, e tão psicótico quanto a protagonista, na pele do laureado ator Vincent Lindon (“O Ódio” de 1995 e “O Valor de um Homem” de 2015). E nem estamos, com isso, subestimando a impressionante imersão da novata Agathe Roucelle, que consegue parecer tão fluida quanto adotar identidades variadas durante o filme sem pronunciar quase nenhuma palavra, só no olhar duro e inflexível (lembrando às vezes a visceralidade de outra atriz tão camaleoa quanto, Charlotte Gainsbourg). A questão é que o nível de entrega espiritual e corpórea de Lindon catalisa ainda mais a química com Roucelle, numa estranha projeção freudiana à la complexo de Édipo, mas onde você não sabe quem é o pai/mãe e quem é o filho/filha, já que ambos ocupam os dois lugares ao mesmo tempo.

Este fascinante intercâmbio de gênero, especialmente com o fato de que ambos precisam lidar com seus instintos familiares avariados, além da confusão mental bastante enevoada entre proteger ou consumir suas crias (como os Titãs faziam), vai gerando onde está o ouro do filme de fato. É algo bastante ímpar o vínculo desesperado entre personagens que não possuem mais nada a perder, pois já perderam a si mesmos tentando se desvencilhar do que a sociedade fez deles, e se transformando, mutando em outras performances… Alterando seus corpos, solidificando a superfície externa com músculos e aço puro para disfarçar a fragilidade interna, que sangra debaixo do titânio como óleo de motor vaza até do carro mais possante da Terra.

As luzes de neon da direção de fotografia acertadíssima de Ruben Impens trazem uma sensação futurística que até torna crível todas as suspensões de descrença fantasiosas, de tal modo que o filme inteiro parece iluminado por faróis de um carro atento, sentado na plateia de espectadores. Isso decerto vem do conhecimento profundo do fotógrafo não só com trabalhos anteriores da diretora, como “Raw” (2016), bem como de outras obras marcantes como “Alabama Monroe” (2012). Sem falar no desenho de som, que explicita a violência mesmo quando ela raramente não é mostrada na câmera, e a trilha hipnótica de Jim Williams (não confundir com o famoso compositor de Spielberg, John Williams), bastante especializado em terror, a criar uma ambientação sufocante e inescapável.

Por fim, não é um filme fácil. É preciso analisar a carreira da diretora como um todo, até seus trabalhos anteriores – não à toa, trouxe parcerias pregressas de volta, como até a atriz Garance Marillier, aqui numa participação especial com talvez a sequência mais angustiante a partir de um piercing no mamilo, demonstrando igualmente que nenhuma nudez é gratuita para esta diretora. Aliás, vale voltar a falar sobre (des)construção de gênero e ressaltar, mesmo sem spoiler, que a forma de retratar o corpo da mulher (ou mesmo do homem) como se ambos pudessem sustentar a gestação de um bebê, ou mesmo que não fosse natural para apenas o corpo feminino ter de fazê-lo (independente do seu direito de escolha) é uma das metáforas mais relevantes que um filme já conseguiu alcançar. Propositalmente desconfortável.

Desconcertantemente provocador.

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