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Saravá, seu tranca-ruas

Em muitos terreiros de candomblé, ele tem status de orixá. Seu Tranca-Ruas das Almas é certamente a entidade mais popular entre as religiões de matriz africana

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A gira começava pontualmente às 18 horas. Pedro vinha correndo do trabalho. Mal comia e já ia pro terreiro. Gostava de ver a chegada de Seu Tranca-Ruas, de ouvir sua gargalhada e sentir aquele arrepio forte. Era um devoto fervoroso, vibrava com cada ponto. Quietinho, no seu canto, sentia a energia daqueles momentos únicos e cada vez que Seu Tranca-Ruas lhe dirigia a palavra, ainda que fosse para um simples “boa noite”, seu coração parecia querer sair pela boca. Era uma fé inabalável.

Apesar da grande quantidade de gente, que vinha até de outros Estados, antes da meia-noite Seu Tranca-Ruas se despedia dizendo: “vou correr minha gira”. Passava por Pedro e lhe dava um abraço: “minha capa sempre vai te proteger, meu filho”. Pedro faltava explodir de emoção e orgulho.

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Foram anos e anos. Com frio ou calor, tempestade ou garoa, toda segunda-feira, Pedro estava lá. Era um terreiro de Candomblé, mas a devoção àquele Exu ultrapassava os limites de qualquer religião. O pai de santo era muito respeitado. Fora iniciado numa casa tradicional de Salvador, mas nunca abandonou seus guias da velha umbanda, especialmente Seu Tranca-Ruas das Almas. Além de testemunhar a seriedade do babalorixá, Pedro presenciou momentos marcantes, que fortaleceram ainda mais sua fé, e outros inusitados, que o fizeram rir e se emocionar.

As filhas de santo sempre perguntavam por que Pedro não se iniciava logo no Candomblé. Tão querido, tão devotado, seria um excelente filho para a casa. Mas antes que Pedro pudesse ensaiar qualquer resposta, o pai de santo já dizia: “deixa o menino, tudo tem sua hora”. Pedro não era exatamente um menino, já estava com quase trinta, mas desde os 16 anos era assíduo, fiel não só ao terreiro, mas a Seu Tranca-Ruas das Almas, que ele amava como a um pai, que ele nunca conhecera.

A mãe de Pedro era evangélica, mas tinha profundo respeito pelo terreiro e por Seu Tranca-Ruas, não se opondo à devoção do filho. Só não podia ouvir falar em feitura de santo. “Meu filho pode ir no terreiro o quanto quiser, só não me inventa de raspar a cabeça”. A avó de Pedro era iniciada, uma senhora muito conhecida, filha de Obaluaiê e grande benzedeira. Mas a vida sofrida da avó era associada pela filha à sua iniciação. Pedro chegou a ouvir algumas discussões das duas:

– A senhora fez o santo e nunca foi feliz.

– Não, minha filha, não diga uma coisa dessas. Eu não fui feliz porque casei com teu pai, aquele cão. Se não fosse Omolu não sei o que seria de mim, não teria suportado. Além de judiar de mim te levou pra igreja. Peste!

Elas batiam boca, mas sempre acabavam rindo de tudo. A avó dizia que Pedro daria continuidade ao legado da família. “Você vai pagar sua língua, viu?”, dizia pra filha com bom humor. “Tá amarrado, sangue de Jesus tem poder”, retrucava. “Mas sangue de bode tem mais”, concluía a avó, caindo na risada.

Quando a avó de Pedro morreu, sua mãe foi ao terreiro. Recebeu o abraço solidário do pai de santo, chorou no seu ombro e pediu que cuidasse dos atos fúnebres. Além da amizade, o carinho com que seu filho era recebido todas as segundas-feiras no terreiro estreitava os laços e a transformava numa grande defensora daquele candomblé. Apesar de evangélica, não admitia que ninguém, nem o próprio pastor, falasse mal de Seu Tranca-Ruas ou de qualquer outra entidade ou orixá na sua frente. “Não fale do que você não sabe! Respeite, que aquele terreiro mata a fome de muita gente.” E quando alguma irmã chegava com um problema muito difícil, ela dava um jeito de levar ao pai de santo.

Naquele ano, o mês de agosto começou com um frio muito rigoroso e na primeira segunda-feira todos estranharam a ausência de Pedro. A gira começou, Seu Tranca-Ruas chegou, entrou pra se arrumar, mas não voltou pro barracão. O clima foi ficando tenso, os ogãs e as filhas de santo sem saber o que dizer, os consulentes impacientes, o murmurinho se espalhando. De repente, só se viu aquele vulto cruzando o salão, um susto tão grande que ninguém mais ousou conspurcar o silêncio.

Uma ventania abriu a porta da casa. De súbito, ele entrou. A mãe chorava: “Seu Tranca-Ruas, meu filho tá morrendo”. As irmãs da igreja oravam pelo rapaz e ficaram horrorizadas com a presença daquele Exu, mas não ousaram repreendê-lo. A situação era muito grave. Cochichavam entre si: “é a tal de leptospirose, a febre do rato”. O rapaz ardia, estava pálido, amarelo. O médico não deu grandes esperanças e disse pra deixa-lo em casa pelo risco de uma infecção hospitalar que poderia ser fatal.

Seu Tranca-Ruas só olhou para a mãe e disse: “chegou a hora.” As irmãs já começaram a chamar por Jesus, a orar com mais intensidade, a falar em línguas, até que a mãe de Pedro deu um grito: “Sai! Sai todo mundo daqui! Vão pras suas casas!” No quarto ficou ela, Pedro e Seu Tranca-Ruas. Pedro começou a murmurar: “Seu Tranca-Ruas me cubra com sua capa, quem tem sua capa escapa, quem tem sua capa escapa.”

– Levanta, meu filho! Minha capa sempre vai te proteger.

E naquele abraço, coberto pela capa de Seu Tranca-Ruas das Almas, Pedro recebeu um sopro de vida. A mãe entendeu o recado e no dia seguinte estava no terreiro com o enxoval de Pedro. Assim como a avó, ele era de Omolu. Sua saída foi no final do mês, no Olubajé. A mãe não participou, mas fez questão de preparar um tabuleiro de pipocas e oferecer ao orixá para agradecer pela vida e pela saúde do filho.

Mais alguns anos se passaram, Pedro continuou fiel ao terreiro e a Seu Tranca-Ruas. Cumpriu as obrigações no Candomblé e todas as segundas-feiras auxiliava nas giras. A mãe, sempre grata, defendia o terreiro e, quando necessário, explicava aos incautos que candomblé não era coisa do diabo.

Certo dia, um membro da igreja atirou uma pedra numa iaô do terreiro. Isso causou um reboliço e muita revolta na vizinhança. Para espanto de todos, principalmente da mãe de Pedro, o pastor saiu em defesa do fiel, mas sua pregação não estava nem na metade quando aquele vulto cruzou o salão e tomou o púlpito: “onde fica o respeito, meu senhor? É só olhar pro seu próprio povo e o senhor vai ver que ninguém concorda com essa injustiça.” Naquele momento, o silêncio dizia “amém”.

Calmamente, ele foi se retirando. Do fundo da assembleia, uma voz ecoou: “saravá, Seu Tranca-Ruas!” Virou-se e imediatamente avistou sua velha amiga, a mãe de Pedro. Jogou sua capa de veludo pras costas, deu uma forte gargalhada e saiu sem olhar para trás.

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