Diversidade

RuPaul e a seriedade do deboche de gênero

A sátira pode não ser o mais eficaz dos instrumentos políticos, mas é uma divertida – e saudável – ferramenta de resistência

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Dia 25 de janeiro entra no ar a terceira temporada de Drag Race All Stars, spin-off do reality show de quase mesmo nome e formato também idealizado e apresentado pelo ícone da cultura pop RuPaul.

Em All Stars competem ex-participantes de Drag Race, com novas regras e prêmio mais prestigioso: vencedoras entram para o Hall da Fama Drag, junto de RuPaul, que há pelo menos três décadas sustenta o título de queen mais famosa do planeta e sabe lá há quantas outras vem trabalhando na direção de popularizar a própria imagem e a arte por trás dela.

A performance drag é majoritariamente feita por homens gays, mas nunca não pertenceu às travestis ou às mulheres trans, como se vê no documentário Paris Is Burning,indefectivelmente citado nos desafios de reading das séries de RuPaul.

O documentário de 1990 narra a cultura dos Bailes, desfiles realizados por comunidades queer negras e latinas na Nova York dos anos 80, e foi com ele que aprendi que “to read” é a ação de expor de forma inteligente, incisiva e preferencialmente engraçada as características mais negativas de uma pessoa.

É uma espécie de insulto, que no universo de RuPaul é consentido, tem data e horário marcados, e quem o fizer de forma mais “shady” – ácida, divertida e venenosa, nessa ordem – vence o desafio.

O filme, e sobretudo a cena que ele documenta, são marcos da construção de novas narrativas de gênero, raça e classe, e sua importância já foi capturada em deliciosas análises de bell hooks e Judith Butler. Não ouso aqui examinar seu sentido, nem o da série, e muito menos de drag. Mas arrisco articular usos políticos de um dos requisitos básicos para ser uma queen: o deboche.

O fim do sentido

Em Simulacros e Simulação, Jean Baudrillad prenuncia o fim do sentido examinando as conexões entre símbolos e realidade na veloz e fugaz economia simbólica da mídia do século XX.

No 1981 de Baudrillard o excesso de informação já não comunicava nada nem produzia mais sentido. Para o francês, o excesso de informação esgota seus conteúdos e, por causa desse excesso, toda a comunicação e o significado, outrora característicos da composição das informações, não passam de encenações de si mesmos.

Parece confuso, mas tente repetir a palavra “maçã” até que ela perca o sentido, e depois aplique esse pensamento à superabundância de informação a qual somos expostos.

Assim como a palavra “maçã” vai se despegando do conceito da fruta conforme a repetimos, significados se despegam de seus significantes conforme são reproduzidos e compartilhados à exaustão.

Para Baudrillard essa é a catástrofe do sentido, e a única resistência possível é a subversão por sua recusa: o silêncio, ou a simulação dos próprios mecanismos do sistema. E drag é justamente a simulação consciente de mecanismos do sistema sexo/gênero.

As paródias de gênero ostentadas pelas drag queens debocham das expressões culturais de gênero. São simulacros, ou seja, simulações do que nunca existiu – as estéticas corporais que usam não pertencem naturalmente às mulheres, embora seus signos contem com nossa ajuda para sustentarem-se como ideais.

Não estou disposta a jogar fora conceituações mais abrangentes de “feminino”, mas é inegável que certos signos deste ideal são sistematicamente usados para justificar várias opressões direcionadas às mulheres.

Assim, me encanta o deboche composto pela encenação do feminino deslocado de corpos de mulheres para os de homens em drag.

Nos reality shows de RuPaul esse deboche vem se estendendo para as expressões culturais não-normativas de gênero. A queen Milk, por exemplo, aparece nas imagens de lançamento de All Stars 3 fazendo drag de fisiculturista.

O trabalho de make de Trixie Mattel é uma espécie de contour geométrico, debochando da artificialidade da maquiagem que modifica com chiaroscuro a estrutura dos rostos de mulheres, e seu nome veio de um apelido pejorativo que recebeu do padrasto por ser um garoto feminino.

Nos reality shows de RuPaul o deboche vem se estendendo para as expressões culturais não-normativas de gênero

Latrice Royale parte das estatísticas de encarceramento desproporcional de homens negros para lacrar no desafio em que interpreta uma agente carcerária.

O deboche é usado pelas drags como estratégia de resistência a estruturas e relações de poder que regulam suas vidas e identidades. A própria Mama Ru criou seu império baseada no deboche: o tal Hall da Fama Drag foi invenção sua, letras de suas músicas nos pedem para “andar como maricas”, e no encerramento da temporada de 2016 ele anunciou sua intenção de “make America gay again”, debochando do slogan da campanha presidencial de Donald Trump, “make America great again”.

Leia também: Uma reflexão sobre 'RuPaul’s Drag Race'

Logicamente, esta resistência é financiada pelos lucros de um programa de TV e merchandising relacionado, mas a força política dessa máquina financeira é alavancada justamente por causa de seu alcance – e não custa lembrar que a cena drag recém saiu dos guetos de pobreza.

Num mundo que equaliza dinheiro e poder, é difícil criticar a ascensão dos marginalizados que objetivamente precisam comprar acesso à vida digna. E essa crítica fica ainda mais difícil de fazer quando o empoderamento financeiro resulta de um trabalho cuja maior característica é debochar de um sistema sexual hierárquico.

O deboche é sério e tem valor

Uma diva pop cuja carreira é patentemente organizada ao redor do deboche é Lady Gaga.

Gaga já debochou da cena cool da Nova York de seus vinte e poucos anos, da obsoleta separação rígida entre arte e cultura pop, de quem questionou sua identidade de gênero e, na estreia da nona temporada de Drag Race ano passado, de si mesma ao fazer de conta que era uma das queens da competição.

Sua conversa com as participantes do concurso, no entanto, foi séria e emocionante: recebendo o afeto de quem confessa ter se inspirado nela para continuar vivendo, Gaga é afetuosa ao confessar ter se inspirado no simbolismo drag desde o início de sua carreira.

Demonstrações explícitas de afeto são uma característica marcante deste programa de entretenimento repleto de ideais de inclusão, respeito e amor. RuPaul, homem negro e homossexual, repete ao final de cada episódio a frase que virou mantra de sua base de fãs: “If you can’t love yourself, how in the hell you’re gonna love somebody else?” (algo como “Se você não consegue se amar, como diabos vai conseguir amar outra pessoa?”).

Ru debocha de gênero, da heterossexualidade compulsória e de outras narrativas de controle por levar o amor a sério e entender que são estas narrativas o que interpela os afetos de quem não cabe em suas normas.

No livro Gaga Feminism: Sex, Gender, and the End of Normal (Feminismo Gaga: Sexo, Gênero e o Fim do Normal, 2012, sem tradução) Jack Halberstam – homem trans e teórico queer conhecido por suas investigações acerca de mulheres e masculinidades – tenta fazer sentido das profundas mudanças socioculturais da nossa era que, contrariando algumas das previsões mais niilistas de Baudrillard, estão sendo informadas pelo devir político de discursos sobre gênero e sexualidade.

Segundo Halberstam o caráter subversivo de fenômenos midiáticos como homens grávidos ou o desenho Bob Esponja pode nos ajudar a compreender e superar as dissonâncias entre as experiências reais e diversas das pessoas e as normas estreitas e rígidas que ainda organizam o imaginário social.

Ecoando Baudrillard no chamado pela recusa do sentido, Halberstam propõe um manifesto pelo caos criativo que estimule novas narrativas sobre sexo, gênero e sexualidade, sustentando que Lady Gaga pode ser lida como sinalizador de um feminismo que celebra o colapso da heteronormatividade. Penso o mesmo de RuPaul.

Observar desequilíbrios de poder é um bom norte para interpretarmos certas ações, e o deboche é bom exemplo disso. Debochar do poder que sustenta narrativas de controle é resistir a ele. Já debochar de quem é vítima de certas opressões é contribuir com elas.

A ação comunicativa pode ser a mesma, mas seus efeitos são diferentes dependendo de quem nele age. Quando Rihanna simula violência contra uma mulher branca no videoclipe de Bitch Better Have My Money o efeito desejado não é fomentar a violência contra mulheres, mas debochar do padrão hegemônico da indústria cultural, que historicamente se refestela na repetição de cenas de violência contra mulheres negras.

O deboche feminista por excelência é a misandria, um “reading” das características mais abjetas do machismo, que simula um mecanismo do sistema: seu equivalente não simétrico, a misoginia, que números de estupro e feminicídio confirmam ser real.

A misandria é puro recurso retórico, e nos confere o poder de articular opressões ressignificando seus perpetradores em nosso imaginário através do humor. E, como é o caso com toda sátira política, o fator cômico não eclipsa a seriedade do comentário.

O deboche, como o reading bem-humorado em forma de misandria, pode até não ser o mais eficaz dos instrumentos políticos de subversão, mas não deixa de ser uma divertida ferramenta de resistência.

O deboche misândrico nos permite escapar momentaneamente das dores causadas pelo machismo, RuPaul style: diversão como combustível da luta feminista, shantay you stay; narrativas misóginas de domínio, sashay away.

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