Diversidade

“Quando o catolicismo é alvo de intolerância, a mobilização é muito maior”

Autora de “Intolerância religiosa – Do proselitismo ao discurso de ódio” analisa relação tensa entre neopentecostais e religiões de matriz afro-brasileira

'Nem todo mundo aceita que o discurso religioso pode ser, em si mesmo, uma violência', diz Milene Santos. Na foto, ato ecumênico realizado em 2016 contra a intolerância religiosa
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Em 2009, um aluno de 13 anos foi expulso de sala de aula e chamado pela professora de “filho do demônio” por usar colares de contas do candomblé. Em 2015, uma menina de 11 anos foi apedrejada por pessoas identificadas como evangélicas ao deixar o culto de candomblé que frequentava, também no Rio de Janeiro.

Segundo a avó, que é mãe-de-santo e testemunhou o ataque, os agressores levantavam a Bíblia e os chamavam de “diabos”. Uma das pedras atingiu a cabeça da menina. A repercussão levou a um encontro o então prefeito carioca, Eduardo Paes, e a atos pedindo o fim da intolerância religiosa.

A violência não está apenas nas ruas. Em diversos canais da televisão aberta, é possível assistir a rituais de exorcismo que, muitas vezes, classificam como “demoníacas” entidades cultuadas pelo candomblé e umbanda.

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Os casos de intolerância religiosa relatados acima mostram como o discurso proselitista de demonização das religiões de matriz afro-brasileira perpetrados institucionalmente por algumas igrejas evangélicas neopentecostais podem orientar e até justificar agressões físicas e simbólicas cometidas contra esse grupo religioso. No Rio, mais de um terço dos registros de ocorrência de intolerância religiosa atinge seguidores de religiões de matriz afro-brasileira.

Ao se debruçar sobre os casos de perseguição religiosa na Idade Média,  a professora universitária e doutoranda em Direito do Estado pela USP, Milene Cristina Santos, resolveu transpor a questão para o Brasil de hoje e focar nas tensões jurídicas entre as pregações religiosas intolerantes promovidas por algumas denominações evangélicas neopentecostais contra religiões afro-brasileiras.

O resultado está no livro “Intolerância religiosa – Do proselitismo ao discurso de ódio” (Editora D’Placito), originalmente sua dissertação de mestrado na UnB.  Confira a entrevista:

CartaCapital: Como surgiu o seu interesse em estudar o discurso religioso neopentecostal de demonização das religiões de matriz afro?
Milene Cristina Santos: Eu estudava intolerância religiosa na Idade Média. Eu cursava algumas disciplinas na pós-graduação em Direito Penal na USP como aluna especial e me interessei sobre os processos inquisitoriais e como eles revelavam um processo de criminalização de culturas: uma cultura dominante cristã que demonizava culturas pagãs.Eu estudei a partir da perspectiva de um historiador italiano, o Carlos Ginzburg.

Comecei, então, a me perguntar se no presente também não haveria essas intolerâncias religiosas baseadas na lógica medieval da demonização: tudo o que não é cristão é pagão, tudo o que é pagão é demoníaco e tudo o que é demoníaco deve ser exterminado.

Pesquisando, encontrei esse livro do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva: A intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. E daí encontrei meu tema de mestrado.

CC: Você cita vários casos relatados pela imprensa de agressões a pessoas e espaços de religiões de matriz afro-brasileiro. Que ligações podemos fazer entre o discurso religioso de demonização de símbolos e práticas religiosas de matriz africana e os casos de intolerância e violência registrados nos últimos anos? Em outras palavras, como o discurso sai do púlpito e vai para a vida dos fieis?
MCS: Eu coloquei os casos de intolerância logo na introdução justamente para exemplificar o caráter violento desse discurso de ódio religioso. Como jurista, eu percebo a prática, em tese, de vários crimes: invasão de domicílio, ultraje a culto, injuria religiosa, lesões corporais, torturas, tentativa de homicídio.

Mas, de todas as violências, decidi focar no discurso porque quando a violência é física, é mais fácil para as pessoas entenderem que elas são inadmissíveis, mas nem todo mundo aceita que o discurso religioso pode ser, em si mesmo, uma violência.

E nas notícias de jornal não fica claro qual é a denominação religiosa dos agressores. Mas fica claro que eles se identificam como evangélicos. Esse link entre que denominação evangélica pratica efetivamente a intolerância, eu fiz com o uso de cientistas sociais – antropologos e sociologos que pesquisam há mais de 40 anos esse conflito entre neopentecostais e afro-brasileiros.

CC: O que caracteriza principalmente esse conflito?
MSC: São vários aspectos interessantes. Por exemplo, no âmbito da Antropologia e da Sociologia da Religião, existe uma análise da importância das teologias da prosperidade na configuração do conflito.

As igrejas neopentecostais adotam a teologia da libertação, na qual todos os males do mundo: doenças físicas, mentais, crimes, frustrações, são causadas pelos demônios.

Esses seres sem corpos que estão a procura de pessoas nas quais eles possam ‘encostar’, ou possuir, para prejudicar. Para que o fiel possa deter a cura e a prosperidade financeira, amorosa, familiar prometidas pela teologia da prosperidade, primeiro ele precisa se libertar dos demônios.

E aí, tanto o espiritismo kardecista quanto as religiões afro-brasileiras são consideradas para eles ‘seitas demoníacas’ que permitem que os demônios tenham uma porta de entrada na humanidade.

Na prática, nos rituais de exorcismo, quando o pastor chama um fiel ‘endemoninhado’ que deseja se libertar e pergunta o nome do demônio, sempre a resposta revela um orixá ou uma entidade do panteão afro-brasileiro.

Geralmente os exus e as pombas-giras. Existe, portanto, uma linha de continuidade simbólica entre entidades que são cultuadas nas religiões afro-brasileiras e que vão ser ressignificadas e também incorporadas nas crenças neopentecostais.

Do ponto de vista jurídico, também existem questões muito importantes. As que eu me debrucei são os limites do proselitismo, que é esse discurso que tenta convencer os outros da veracidade de suas crenças religiosas, e os limites do discurso de ódio religioso, que é um discurso que fomenta o ódio, a intolerância e a hostilidade, não apenas contra as crenças religiosas de uma outra confissão mas que deixa implícito, também, um potencial discriminatório contra as pessoas dessas outras confissões religiosas.

Daí, eu analiso alguns processos judiciais, principalmente ações civis públicas.

CC:Quais?
MCS: Uma delas foi ajuizada pelo Ministério Público Federal de São Paulo e outra pelo MPF-BA que discutiam exatamente os limites constitucionais desse discurso proselitista que se manifesta como discurso de ódio religioso. A análise dos crimes em si, de como eles foram cometidos, eu deixei de fora. O meu trabalho está dentro da área do direito constitucional.

CC: O fato da Igreja Universal do Reino de Deus ser dona de um aparato midiático influencia na maior disseminação desse discurso contra as religiões afro-brasileiras?
MSC: Com certeza. A Igreja Universal é a maior neopentecostal e possui canais de televisão, emissoras de radio, livros, revistas, panfletos, sites – e tudo isso ajuda a potencializar essa mensagem de intolerância religiosa, que é uma mensagem institucional, não necessariamente adotada por todos fieis da igreja.

Mas cada um desses meios de comunicação tem consequencias e caracteristicas difernetes quando analisamos o limite do proselitismo e do discurso de ódio: quanto maior o alcance da mensagem intolerante, mais graves deveriam ser as consequencias juridicas.

CC: Isso acontece na prática?
MCS: Na prática é mais difícil. Eu analisei alguns processos judiciais que tratavam dessas práticas intolerantes e o que eu percebi foi que nas primeiras instâncias existe o acolhimento dessa pretensão contra o discurso de ódio religioso, então, o MPF acolhe as denúncias das religiões de matriz africana, leva ao poder Judiciário e as primeiras instâncias acolhem a necessidade de impor limites aos discursos.

Mas aí começa o festival de recursos e, nas instâncias mais superiores, dá para perceber que a jurisprudência não tende a levar a sério os efeitos do discurso de ódio religioso sobre os direitos à igualdade e à dignidade dos afro-brasileiros.

As ações civis públicas são conhecidas por nunca terminarem. Eles tendem a diminuir os valores das indenizações por danos morais e materiais coletivos. E tendem a não responsabilizar criminalmente e não considerar que o discurso de ódio religioso está tipificado no artigo 20 da lei 7716/89 que é o mesmo crime de racismo.

CC: É possível relacionar as decisões contrárias e a filiação de juristas às denominações evangélicas?
MCS: É difícil fazer essa relação. Às vezes é possível perceber que o juiz é evangélico ou perceber que o político que propõe uma lei pra proibir abate de animais é evangélico, mas existem muitos juízes que são católicos.

Nós esquecemos que o catolicismo tem uma tradição muito maior de livros que também demonizaram o espiritismo e as religiões de matriz africana.

E também percebo que, quando é o catolicismo que é a religião ofendida em crimes de ultraje ao culto por meio dos discursos de ódio, a mobilização social e judicial é muito maior.

No caso do “chute na santa”, em que um pastor neopentecostal chutou Nossa Senhora Aparecida no dia da Padroeira em cadeia nacional, ele foi condenado criminalmente, não só civilmente. Aqui, nem estou entrando no mérito de quais condutas deveriam ou não ser criminalizadas pelo Direito Penal.

Apenas constatando que existem tipos penais que tem a liberdade religiosa como bem jurídico, tanto no Código Penal quanto em leis penais especiais e o quanto essa aplicação das leis penais é seletiva.

CC:Como assim?
MCS: Quando a violência penal se volta contra os evangélicos ou o catolicismo, o sistema de justiça é mais eficiente do que quando ele se volta para as religiões de matriz afro-brasileira.

CC: Qual é a importância de se fazer a discussão sobre o ódio religioso no campo do direito. É recorrente, no campo do senso comum, falar de liberdade de expressão para defender esse tipo de posição. Como você vê isso? Qual é a importância de se discutir isso no campo do Direito?
MCS: É exatamente esse o debate constitucional extremamente difícil que eu me propus a analisar: os limites que podem ser legitimamente impostos, no Estado Democrático de Direito, ao exercício da liberdade de expressão religiosa. Quando alguém, no meio de uma pregação religiosa, demoniza outras crenças, isso pode ou não, configurar um discurso de ódio religioso.

A definição de discurso de ódio existe justamente como um dos limites possíveis à liberdade de expressão. Se ela fosse um direito fundamental absoluto não haveria crimes de injúria, calunia, difamação. O crime de discurso de ódio é apenas mais um limite do direito fundamental à liberdade de expressão.

Mas, para que ele seja legitimamente imposto, é necessário analisar quais são as exigências dos outros direitos fundamentais que estão em conflito dentro da perspectiva da colisão dos direitos fundamentais: de um lado estaria a liberdade de expressão e do outro lado o direito a igualdade e dignidade das pessoas atingidas pelo discurso.

Em termos simples: a ideia é que não há direitos humanos absolutos. Todos os direitos encontram o seu limite na ideia mais simples de que o seu direito termina quando começa o direito do outro. Então, o discurso de ódio não seria um exercício legítimo da liberdade de expressão, mas sim o abuso do direito à liberdade de expressão.

CC: Quem vai vencer a guerra santa?
MCS: De fato, não tenho como responder a essa pergunta. Mas eu acredito na capacidade de resistência das religiões de matriz africana. Elas resistiram e se transformaram durante o processo de resistência à colonização, à escravidão, à perseguição racista e higienista dos primeiros tempos da República e elas continuam se articulando e resistindo a esses novos inimigos neopentecostais que se aliaram a alguns antigos.

Acho que, no momento, os neopentecostais ganharam muito espaço político e social, são o segmento religioso que mais cresce na sociedade brasileira e tem ocupado algos cargos no poder Legislativo e agora estão alcançando o Executivo.

Mas, como disse, acredito na capacidade de resistência das religiões de matriz africana e há também muitos cristãos de outras matrizes que tem se aliado à defesa da liberdade religiosa, da paz, da tolerância e do respeito.

Eu vejo, portanto, uma série de articulações de estratégias de luta das religiões de matriz africana contra as novas formas de intolerância religiosa. Infelizmente, percebemos que o Estado volta a ser um ator importante de perseguição às religiões afro, como vimos outro dia naquela decisão judicial em Minas Gerais, mas aposto no melhor: na tolerância dos moderados, que entendem a importância da liberdade religiosa, e na capacidade de resistência e de luta das religiões afro-brasileiras para construir uma aliança contra as perseguições.

CC: O que podemos fazer, como sociedade, para tentar coibir esse tipo de manifestação e não disseminar o discurso de ódio?
MCS: Em primeiro lugar, precisamos nos educar para os Direitos Humanos. Estamos vivendo um momento muito intolerante para o avanço dos Direitos Humanos em nossa sociedade. Mas as pessoas, tendo ou não religião, precisam se educar para reconhecer a liberdade religiosa dos outros. Elas assumiram a responsabilidade moral de decidir sobre os seus valores existenciais e tem que entender que as outras pessoas têm o mesmo direito.

E, quando souberem de casos de violências baseadas em motivações religiosas, é importante procurar as autoridades do sistema de Justiça e forçar a aplicação das leis. Então, se o Estado minimiza essas violências, é preciso denunciar. Sabemos que o Estado minimiza os casos de racismo, por exemplo, então é importante conhecer que existem ONGs, movimentos sociais, fóruns interreligiosos, no âmbito da OAB há comissões específicas que fornecem asistência jurídica gratuita.

E espero que o livro seja uma contribuição no sentido de conscientizar sobre a necessidade de nós, os operadores do sistema de Justiça, e acadêmicos conhecermos mais sobre a história brasileira de intolerância que é tão antiga e, ao mesmo tempo, tão atual.

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