Diversidade

Programa leva cultura de paz a condenados por agressão a mulheres

Proposta socioeducativa do ‘E agora, José’ é discutir machismo e masculinidade

(Foto: Carol Scorce)
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“Na sua casa, Tadeu*, quem é que faz os serviços domésticos? Lavar roupa, cuidar da louça suja, varrer o chão, essas coisas, quem é que faz?”, pergunta Eurico de Marcos Jardim, sentando na frente da lousa, na cadeira que o coloca na condição de professor da turma.

Meio sem jeito, o homem começa a falar como quem vai contar uma história. “Olhe, quando ela (a ex-esposa) saiu de casa, eu fui uns três dias pro trabalho sem comer. Chegava em casa e não tinha comida também. Comecei a buscar o jantar na casa da minha irmã, e comprar comida pronta pra levar no serviço. Fali. O dinheiro ia só pra comprar comida feita. Aí não teve jeito, aprendi a cozinhar na marra, porque estava doendo no meu bolso. Hoje faço de tudo em casa. Mas antes, eu não fazia nem ideia.”

Sem precisar ser questionado, o colega sentado à direita de Tadeu orgulha-se. “Eu trabalho em casa também. Cuido de tudo junto com ela (a esposa). O difícil é explicar para as crianças que elas têm de fazer também. Minha menina faz. O menino não”, conta Maurício.

Eurico faz a mesma pergunta para Gilberto, o mais tímido de todos. Olhando para os colegas, ele não se envergonha em ser franco. “Minha irmã faz tudo em casa. Eu não faço nada. Nada.”

“Pois é…”, segue Eurico, que é instrutor no projeto ‘E Agora José’, programa socioeducativo de Santo André que atende homens condenados pela Lei Maria da Penha. Em vez de entregar cestas básicas ou limpar parques, eles têm de ir todas as quartas-feiras – num total de 26 encontros – a uma pequena sala na Defensoria Pública da cidade falar sobre machismo e masculinidade.

Lá eles são provocados a refletir e a se sentirem responsáveis pela violência que foram capazes de cometer. Aprendem a tratar homens e mulheres como iguais, com igual respeito, e, principalmente, a resolver conflitos com diálogo, rejeitando a prática da violência.

As aulas abordam incômodos e pensamentos sobre como os homens se tornam homens atendendo um padrão básico forjado historicamente, ou seja, um modo de ser aprendido e ensinado, e quais as consequências que o modo machista de ser homem traz para toda a sociedade.

Numa dessas noites quentes de janeiro, o grupo falava sobre trabalho doméstico. Os instrutores, abertos às experiências individuais de cada um, conduziam a conversa de maneira que eles compreendessem que as relações entre homens e mulheres não são justas, e que isso é uma forma de violência.

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“Eles demoram a perceber como a violência atinge a mulher. Há uma fixação pela agressão física. Todo o resto, para eles, não deve ser criminalizado. Isso é a cultura machista. Lá eles são levados a refletir sobre as violências que uma mulher sofre no trabalho, no ônibus, na escola, em casa, por ser idosa ou por ser criança, e a entender que eles fazem parte dessas violências”, explica Flávio Urra, coordenador e fundador do projeto.

Os condenados são encaminhados para o ‘E Agora José’ pela vara de execução penal, e todos têm de ter penas menores do que dois anos de prisão. Alguns não passaram antes pela prisão, outros sim. Mais de 200 passaram pelo programa e não há registros de reincidência.

De homem para homem

O instrutor Paulo Roberto Cagliaria trabalha há 4 anos no projeto, mas sua militância na violência doméstica é bem anterior. Em meados dos anos 2000 tentou junto do companheiro formar grupos de discussões espontâneos com homens. Não deu certo.

“Marcávamos um futebol e depois, na hora da cervejinha, começávamos falar sobre prática machistas. Ninguém voltava”, conta, rindo da própria inexperiência na época.

Quando passou a trabalhar em uma casa abrigo para mulheres vítimas de violência, Paulo entendeu que a ideia deveria ser uma política pública. Foi então convidado para contribuir no programa.

“Por um tempo fiquei na casa abrigo e aqui. Lá eu tinha contato com as histórias das mulheres, sabia o que esses homens tinham feito, e isso prejudicava meu trabalho aqui. Prefiro não saber e trabalhar do zero com eles” explica o Paulo.

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Eurico, que conduziu a discussão sobre trabalho doméstico, entendeu a necessidade de conversar com homens a partir de um trabalho que realizou com programas de transferências de renda. As mulheres eram as responsáveis pelos benefícios, e falando com elas é que ele entendeu a necessidade de falar com eles.

“Eu tentava entender como aquela mulher e aquela família vivia, e dava algumas orientações, e a coisa que mais ouvia era “olha, moço, o senhor devia dizer isso é para o meu marido”. Elas recebiam o benefício, mas continuavam sem autonomia. É impossível a sociedade ser menos machista e o homem não renunciar à violência.”, conta Eurico.

Antes o ‘E Agora José’ estava associado a secretaria de Políticas para as Mulheres de Santo André, extinta em 2016 na troca de gestão. O judiciário local incorporou, a partir de então, o programa. Mas ele está resguardado apenas pela boa vontade da alguns poucos funcionários. Nenhum dos colaboradores recebe pelo trabalho.

Formados em antimachismo

Depois de 20 encontros, os participantes fazem a formatura. Diante da turma, desabafam sobre os dias ali, se foi bom, se não foi, como pretendem se comportar a partir de então.

José tem quase 30 anos. Fez a sua formatura neste janeiro. Parecia contente. Nem ele e nem a turma se preocuparam em estourar o horário da aula para que ele pudesse fazer o seu relato.

“Aprendi a sair com os amigos na boa, sem fazer besteira. Cadeia não é lugar para ninguém não. Aprendi que no meio de uma discussão, a melhor coisa é ir embora. Deixar para lá”, desabafa.

Depois da formatura eles têm de voltar para mais alguns encontros avaliativos, de acompanhamento. Eurico, que foi para o ‘E Agora José’ por acreditar na cultura de paz, afirma que a última pergunta que faz a eles, no dia da formatura é: “Você é capaz de renunciar à violência?”.

*Os nomes dos participantes do curso foram modificados na reportagem.

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