Diversidade

O medo de fake news não pode invisibilizar mulheres, negros e LGBTs na esquerda

Essas pautas não estão postas para isolar, mas para ampliar o nosso campo, alerta Manuela d’Ávila

Foto: Agência Brasil
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A conjuntura brasileira sob o governo Bolsonaro tem elementos suficientes para caber nas histórias de realismo fantástico borgeanas. De mãos dadas com o mirabolante, só que longe da mágica. Sem a fantasia, nos resta a vida real. Aquela com mais de 375 mil mortos em decorrência da escolha governamental de abraçar o vírus e não enfrentá-lo, com 8,4 milhões de trabalhadores que perderam o emprego no último ano. Aquela em que mais de 125 milhões de brasileiros vivem sob o terror da insegurança alimentar.

Diante de um presente tão imenso de destruição do Brasil e de ameaça permanente à vida da população, construir a unidade de ação política tem sido rotina para o nosso campo: nos movimentos sociais e no Parlamento, os partidos de esquerda atuam unitariamente, buscando brechas para a construção de vitórias. Tivemos algumas: a renda emergencial e o Fundeb, no ano passado e a instalação da CPI, no Senado, neste ano. Mesmo assim, o resultado da eleição para a Presidência da Câmara e a insuficiência de assinaturas para que a CPI também acontecesse naquela casa demonstram que a crescente rejeição de Bolsonaro parece não afetar determinados grupos e partidos que, aparentemente, ampliam suas vantagens à medida que o governo se encontra mais frágil.

Além disso, a disputa eleitoral do ano passado deixa claro que, apesar de Bolsonaro ter desaparecido dos palanques políticos, como se encarnasse ele próprio o vírus, as ideias que podemos definir como centrais do bolsonarismo seguem vivas e fortes. Em Porto Alegre, cidade em que enfrentei a eleição, chegando ao segundo turno com a desejada unidade (além de PCdoB e PT, aliados desde o primeiro turno, tivemos o PSOL, o PDT, a Rede, o PV e o apoio nacional do PSB), perdemos para uma máquina de desinformação virtual e real que trabalhava temas como a ideologia de gênero e seus banheiros unissex, a destruição de templos religiosos, a transformação da cidade na Venezuela, em que se liberaria a carne de cachorro como alimento, o negacionismo com relação às medidas que deveriam ser adotadas para enfrentar o coronavírus e, é claro, uma verdadeira aula de misoginia e machismo. Ou seja, perdemos para o bolsonarismo nu e cru, mesmo sem a presença de Bolsonaro.

É justamente por ter essa leitura da realidade que me somo às vozes que defendem o esforço para a formação da unidade política mais ampla possível como caminho para a construção de uma vitória eleitoral e política. Essa unidade pode ocorrer em diferentes níveis. Se é urgente que seja amplíssima para garantirmos as liberdades democráticas e a derrota das forças da extrema-direita neoliberal, é necessário que seja programática para apresentarmos à população a ideia de reconstrução do País e a garantia da dignidade da população por meio de um projeto nacional que enfrente a destruição causada por Temer e Bolsonaro.

O espaço de debate entre os partidos deve avançar para as alternativas nacional e estaduais para 2022, com a maturidade que a realidade concreta nos impõe e que os setores identificados com nossas ideias nos exigem. Não há espaço para o polemismo estridente e falso que artificializa ou amplifica diferenças secundárias diante das urgências do País e de nosso povo. É evidente que a retomada dos direitos políticos de Lula traz novo fôlego.

Entretanto, a construção dessa unidade não pode deixar de lado movimentos e pautas que, apesar de vistas como não centrais, são partes fundamentais da renovação de nosso programa. O medo da desinformação e da fábrica de fake news não pode invisibilizar mulheres, negros, LGBTs e todos os que são alvo prioritário da violência e do ódio do governo atual e dos efeitos concretos da desigualdade brasileira. Se trabalho e renda fazem parte central do programa de retomada, o IBGE nos mostra que o desemprego permanece acima da média entre mulheres (16,4%). Entre os negros, a taxa é de 17,2%, ambos acima da média nacional. Ou seja, em vez de nos basearmos na explicação simplista de que enfrentar essas pautas é cair num identitarismo raso, devemos compreendê-las como centrais para nossa relação com setores mais amplos da sociedade. E colocar esta nova geração de militantes sociais na mesa do debate. Episódios como o da Brazil Conference, em que, como parte da rotina, cinco homens brancos debatem alternativas para o Brasil, como se a imensa ação política de negros e negras, indígenas e mulheres fosse inexistente ou por eles tuteladas, deveriam ser vistas como um acinte por todos nós.

É um imenso desafio estarmos unidos e com um programa que se conecte com o Brasil desse tempo. Essas pautas não estão postas para isolar, mas para ampliar o nosso campo. Há processos inevitáveis: se não aprendemos pelo amor, compreendemos, então, pela dor. Essa “realidade fantástica” exige que a gente tenha responsabilidade histórica e grandeza para colocar o objetivo de superar esse horror à frente de qualquer outro.

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