Diversidade

Instituições tiram pessoas com deficiência do convívio social

Dados da Secretaria Nacional de Assistência Social mostram que, até 2016, 5037 adultos estavam vivendo em instituições de apoio para pessoas com deficiência. O número de crianças é maior, eram 5078 até aquele ano. No entanto, um relatório lançado nesta quarta-feira 23 pela Human Rights […]

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Dados da Secretaria Nacional de Assistência Social mostram que, até 2016, 5037 adultos estavam vivendo em instituições de apoio para pessoas com deficiência. O número de crianças é maior, eram 5078 até aquele ano. No entanto, um relatório lançado nesta quarta-feira 23 pela Human Rights Watch deixa claro que esses dados, preenchidos pelas próprias instituições, provavelmente não refletem os números reais.

“No Brasil, as instituições muitas vezes são as únicas opções de residência de longo prazo para muitas pessoas com deficiência”, afirma o documento ‘Eles ficam até morrer: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil”.

O relatório traz relatos de uma série de abusos que adultos e crianças enfrentam em instituições de acolhimento a pessoas com deficiência. Foram visitadas 19 instituições em três estados brasileiros e no Distrito Federal. Dessas, 11 eram voltadas para adultos e oito para crianças. A maioria das instituições tinham entre 30 e 50 pessoas e o relatório comprovou que, em grande parte dos casos, não havia suporte para atender, de maneira correta, todos eles.

Em 2015 o Brasil adotou o Estatuto das Pessoas com Deficiência. No ano seguinte, o Congresso brasileiro aprovou a Lei Brasileira da Inclusão. A lei estabeleceu um novo quadro de proteção, com medidas de acessibilidade, educação, participação política e outros direitos. Contudo, elas não são suficientes e o governo depende quase exclusivamente de instituições privadas para acolher crianças e adultos com deficiências físicas, mentais e psicossociais.

Segundo Maria Laura Canineu, diretora do escritório da HRW no Brasil, o País avançou no tema nos últimos anos, mas o problema é que esses mecanismos legais focam em temas como acessibilidade e inclusão no cotidiano, “mas esquecem dos seres humanos que estão segregados e institucionalizados, retirados do convívio social”.

De acordo com um dos autores do relatório, Carlos Ríos Espinosa, que é pesquisador da Divisão de Direitos das Pessoas com Deficiência, o governo brasileiro oferece apoio insuficiente para que famílias de crianças com deficiência criem seus filhos em casa, especialmente aquelas famílias afeitadas pela pobreza, desemprego e desigualdade social.

‘É como uma prisão’

“Este lugar é muito ruim, é como uma prisão. Eu não quero ficar aqui. Eu sou obrigada a ficar aqui. Meus filhos não querem me ajudar em casa. Embora dois dos meus filhos venham me visitar a cada duas semanas, eu nunca saio. Eu gostaria de sair, ir embora daqui. É o meu sonho. Quando você fica assim [com uma deficiência], acabou.”

O trecho acima faz parte de uma série de relatos que o documento traz e mostra como é dramática a situação a quem só restou o acolhimento em instituições privadas. Para Espinosa, o problema central é a institucionalização do cuidado.

Em oito das instituições que a HRW visitou, funcionários costumavam restringir a liberdade de adultos e crianças. De acordo com legislações internacionais às quais o Brasil é signatário, a prática é chamada de detenção ilegal, na prática as pessoas que moravam nas instituições de acolhimento eram privadas do direito de tomarem decisões por conta própria, e se encontravam sob a tutela de outra pessoa como o diretor da instituição ou um familiar.

“São sempre sujeitas ao controle de outras pessoas e não têm controle sobre as suas próprias vidas”, explica. Ele cita dos casos mais “sutis”, quando a pessoa está sob tutela de um familiar, até os casos mais impressionantes, como o uso de camisa de força ou de panos para amarrar as pessoas às camas.

“O que mais me impressionou, além do número de anos que as pessoas passam nas instituições, é que elas não podem escolher, por si mesmas, como querem viver. Simplesmente perdem o contato com a sociedade”, afirma Espinosa.

A maioria dos moradores vivem isolados da sociedade, sujeito à negligências e abusos, têm pouco mais do que suas necessidades mais básicas atendidas e estão limitados a atividades que não provocam nelas qualquer estímulo. Passam os dias deitados em suas camas sem fazer nada ou por horas a fio na frente de uma televisão.

O isolamento acarreta sequelas e graves consequências à vida dessas pessoas. Muitos chegam aos locais ainda na infância. “Nelas, o impacto é dramático”, afirma Canineu. “A institucionalização, a longo prazo, acarreta problemas ao desenvolvimento cognitivo, social e emocional”, explica. Em sete das onze instituições visitadas pela HRW, havia adultos com deficiência residindo desde a infância. O contato com os familiares vai se perdendo aos poucos, conforme os moradores crescem.

Em uma instituição, funcionários declararam que cerca de 10% dos adultos ainda recebiam visitas dos familiares. Em outra instituição todos os 51 residentes estavam lá desde que eram crianças. Muitos tinham mais de 50 anos de idade. Questionado, o diretor da instituição afirmou: “Eles ficam até morrer”.

Invisibilidade

Segundo Canineu, apesar de já haverem pesquisas na área, o tema é bastante novo e a diretora espera que o relatório seja um chamado de atenção ao governo e à sociedade. “Estamos tratando de pessoas vulneráveis dentro de um tema que já trata de vulnerabilidade”, explica. “São pessoas à margem da sociedade e o que mais me chama a atenção é que esse é um tema invisível.”

Espinosa aponta para recomendações que o relatório fez ao governo. “O primeiro ponto é a desinstitucionalização”, explica. As instituições enfrentam graves dificuldades financeiras. Algumas possuem convênios com órgãos municipais ou estaduais para seu financiamento.

Nesses casos, o relatório comprovou que muitas vezes as autoridades não repassaram recursos em tempo hábil ou interromperam o financiamento de instituições por longos períodos. Também há por parte do governo a expectativa que as instituições garantam seu próprio financiamento de forma independente, o que não ocorre.

O pesquisador também propõe uma “força tarefa” que envolva o Ministério Público e as Defensorias Públicas, para a fiscalização e o monitoramento de instituições de acolhimento com maior frequência do que ocorre atualmente.

“É preciso criar serviços alternativos nas comunidades e equipamentos que dê às pessoas uma vida independente mas com apoio”, explica Canineu. Ela cita que atualmente, já existem as chamadas residências inclusivas, criadas pelo governo.

A iniciativa, ainda em andamento, oferece residência para grupos pequenos de até dez pessoas com deficiência vindas de instituições.A HRW visitou cinco destas e concluiu que, da forma como funcionam atualmente, elas não garantem o direito de viver independentemente. Segundo Espinosa, elas não devem ser vistas como uma alternativa a programas de auxílio financeiro às famílias, assistência social e reformulação do sistema de curatela.

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