Diversidade

“Obama subestimou a violência racista dos Estados Unidos”

Uma das acadêmicas de maior renome da Williams College, James critica a falsa sensação de progresso racial na gestão do ex-presidente dos EUA

'Os negros pensaram que pertenciam ao próprio país, sem entender que isso tinha data de validade', diz James sobre a era Obama
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“Obrigado pelo livro, mas ele não tem nada a ver com a minha vida.” Foi a carta curta e grossa de Jalil Mutanqim, ativista dos Panteras Negras preso desde 1971, que abriu os olhos de Joy James para expandir o ativismo para fora dos muros da academia.

Aos 59 anos, ela é uma das acadêmicas de maior renome da Williams College, uma pequena universidade de elite na costa leste dos Estados Unidos. Especializada em filosofia política e estudos afro-americanos, ela foi apresentada à mobilização política por ninguém menos que Angela Davis.

James trabalha com presos políticos há 20 anos e milita no movimento abolicionista contemporâneo, que visa acabar com as prisões — a décima terceira emenda da constituição americana, que aboliu a escravidão, não vale para pessoas privadas de liberdade.

Em entrevista a CartaCapital, ela criticou as políticas de segurança pública na gestão Obama e o feminismo negro. Também se disse entusiasmada por novas ativistas, como Alexandria Ocasio-Cortez – estrela ascendente da ala socialista do Partido Democrata, atualmente concorrendo ao Senado – e Erica Garner, a filha de um homem morto pela polícia que se converteu em ativista e morreu no fim do ano passado, aos 27 anos.

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

CC: Qual  diagnóstico a sra. faz da democracia, nos EUA e no mundo?

Joy James: Ela está muito frágil. Passamos muito tempo reparando as pessoas que foram traumatizadas pela polícia, ou pelas prisões, ou as enterrando, e isso torna muito difícil ser proativo com a democracia e a organização política. Temos muita gente desgastada.

Pensando no caso da Marielle Franco: você conecta a política doméstica com a internacional, e é aí que acontece a repressão. Foi isso que aconteceu com Malcom X, quando ele viajou a Meca e passou a ser financiado pelo Egito, segundo algumas fontes. Quando ele voltou aos EUA, foi assassinado pouco depois. Foi o que houve com Martin Luther King, quando ele juntou o ativismo pelos direitos civis com a crítica à Guerra do Vietnã e começou a denunciar o capitalismo e o imperialismo — e em 1968 ele também foi morto. O fio é uma coalizão organizada e internacional, e que também apoiamos a democracia quando apoiamos uns aos outros.

CC: Como vê o debate sobre as prisões na atualidade?

JJ: Senti que a resistência crítica e o abolicionismo mainstream estavam minimizando os presos políticos. Uma vez que você considera a ideia de presos políticos, tem que lidar com a autonomia deles. Geralmente falamos do encarceramento em massa e de suas vítimas. Mas os presos políticos não são vítimas, são ativistas, intelectuais. Alguns usam violência, outros não.

A honra é muito importante e acho que é dela que os abolicionistas sentem falta. A honra e a dignidade é o que os torna (presos) humanos. Você tem que respeitá-los.

A democracia ainda não se consolidou no que diz respeito aos negros. É por isso que somos policiados, mortos e humilhados em maior escala. Mas é essa asserção de dignidade – mesmo quando você não é pobre – que leva à rebelião. E penso que é essa asserção que costuma se perder ou ser mal compreendida quando resolvemos a política no pragmatismo.

CC: A sra. leciona um curso sobre o racismo institucional na era Obama. Em retrospecto, como avalia a política racial do ex-presidente?

JJ: O governo norte-americano, na gestão Obama, diminuiu a importância da violência dos supremacistas brancos. Sob Obama, quase todos os chefes do aparato de policiamento eram negros. Obama era o comandante-chefe dos militares, Eric Holder era o advogado-geral, e depois dele foi Lorretta Lynch. O responsável pela segurança interna era Jay Johnson. Então pensei: como é que todo mundo no controle do aparato policial nos Estados Unidos é negro e mesmo assim você não consegue controlar a violência contra os negros por parte da polícia?

Então o Obama disse algo muito pungente — sempre vou lembrar a frase, porque o verbo que usou é incomum. Ele disse, ‘Não posso federalizar a polícia’. Não entendi o significado de primeira, mas então percebi: ah, você acabou de dizer que não consegue controlar a polícia dos EUA. Então por que estamos nos dirigindo a você nas petições? Ele basicamente quis dizer, ‘Perdão, gente, não consigo controlá-los’.

CC: Era apenas simbólico?

JJ: É arrogância, é orgulho, é performance. Trump realmente odeia os negros e age de modo indecente, então claro que há um contraste nítido entre ambos. Mas o que os liberais estavam dispostos a arriscar, sob a gestão de um presidente negro liberal, era mínimo.

No final, as pessoas pensaram, ‘O que eu tirei disso tudo?’. As elites negras tiraram muita coisa, muito capital cultural. Elas iam às festas na Casa Branca. Era um momento em que os negros pensaram que pertenciam ao próprio país, sem entender que isso tinha data de validade. E essa sensação de pertencimento tinha mais a ver com cultura e representação do que com controle sobre a violência e a economia.

Paramos de focar na violência racista [na gestão Obama]. Focamos no fato de que ele cantou ‘Amazing Grace’ e chorou [após o massacre em uma igreja de Charleston]. Esse momento de vulnerabilidade e perdão negros estava estampado na cara do presidente, como se estivéssemos sempre ofendendo.

Mesmo quando somos assassinados, temos que ser dóceis. Não podemos manifestar raiva em público. Esse era o modelo a ser seguido, o modelo oficial do abolicionismo liberal convencional — ‘não irrite os brancos’. Mas eles já estão irritados.

Havia toda essa narrativa triunfal de que tínhamos superado as piores partes e estávamos seguindo adiante. Na verdade, ainda temos que passar pelas piores partes, porque os negros e os radicais são sempre orientados a calar a boca, trabalhar com coalizões e parar de aprontar.

CC: Outro curso que a sra. leciona é focado nas mulheres na política nacional. O que pensa das candidatas nas eleições no Legislativo, em novembro, como Alexandria Ocasio-Cortez?

JJ: Fico animada com ela. Adoro como a juventude está tomando seu espaço. Sei que o Partido Democrata está tentando conter o que vê como ‘a facção do Bernie [Sanders]’, mas ela não é a menina do Bernie. Ela é autônoma e é um fenômeno único. Muito da política é comprometimento ideológico, e também alguma traição. Sinto que em algum momento ela vai se comprometer, mas não acho que trairá ninguém. Era assim que eu também via a Erica Garner.

Fiquei obcecada pela Erica Garner. Ela não fazia a política dos liberais. Se fizesse, teria aparecido nos jornais quando morreu, mas não foi assim. Ela criou sozinha uma?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> das propagandas de campanha mais poderosas nas últimas décadas. Acho que sou uma versão mais atenuada dela, dentro dos espaços liberais.

CC: E os movimentos recentes pela justiça racial, como o Black Lives Matter?

JJ: É complicado. Tenho a Erica Garner como modelo, mas não as outras organizações, como o Black Lives Matter (BLM) e o Say Her Name. O BLM recebeu 100 milhões de dólares da Fundação Ford. Tudo bem. Mas eles também negaram dinheiro ao Martin Luther King quando ele passou a criticar o imperialismo e o capitalismo, então os pagantes têm as suas vontades.

Eles [BLM] estão fazendo coisas importantes, mas não são novidades — ao contrário da Alexandria Ocasio-Cortez e da Erica Garner. Não tem que haver só uma disrupção da norma, mas uma proposta de novos caminhos.

Nossos cérebros estão tão engessados na mesma definição de democracia e trabalho duro, e precisamos abrir espaço para novas formas de pensar. É assim que vejo esses jovens que fogem da política tradicional — não é para destruir nada, mas para plantar algo novo. Não dá para respirarmos sem esse novo fervor político e intelectual.

CC: A sra. também faz uma crítica do feminismo negro. Poderia explicá-la?

JJ: As pessoas se contentam em achar que o feminismo negro é necessariamente mais progressista que o feminismo branco, porque o tornaram monolítico. Meu argumento é que já resolvemos isso nos anos oitenta, e que agora precisamos olhar para a ideologia. Então mesmo com a interseccionalidade, eu pergunto, ‘Ok, mas cadê a ideologia?’. É ela que vai dizer se temos uma marxista ou uma capitalista, uma radical ou uma neoliberal.

É essa ausência de interrogação do feminismo negro, de imbuir nele uma autocrítica, que permite que pensemos que ele é sempre progressista e transformador, mesmo quando não é. Teve quem boicotou meus textos, por eu fazer essa crítica.

Os feminismos negros se consolidaram como uma vanguarda, mas passam muito tempo fazendo uma análise da vitimização. Vitimização não é sinônimo de liderança. Só porque você foi vitimizado, não quer dizer que deva liderar [um movimento político]. A sua subalternidade na ordem social não reflete, necessariamente, a sua coragem de mudá-la. 

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