Diversidade
Gênero: uma visão que vai além das polêmicas das redes sociais
Governo declara guerra à ideologia de gênero, mas o enfoque que as ciências humanas têm do tema é profundamente distinto


Por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o Brasil se tornou o 43º país a criminalizar a homofobia. Em seu voto, o ministro Celso de Mello chamou a visão de mundo que pretende determinar os papeis sociais de homens e mulheres a partir de suas diferenças biológicas de “ideia artificialmente construída”. A reação imediata do atual presidente Jair Bolsonaro, ao chamar a decisão de equivocada e lamentar a ausência de um ministro evangélico no STF, dá a medida exata dos desafios à frente no trato com as questões de gênero e sexualidade. Até mesmo os diplomatas brasileiros estão oficialmente instruídos pelo Itamaraty a reproduzirem o entendimento do atual governo, para quem gênero é sinônimo de sexo biológico: feminino ou masculino – ainda que a ciência demonstre o contrário.
Esse cenário já estava claro desde o discurso de posse no Congresso Nacional, quando o presidente Jair Bolsonaro declarou que seu governo iria unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões, a tradição judaico-cristã e que, para isso, combateria a ideologia de gênero. Poucos dias depois, Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, surgiu em vídeo afirmando que se tratava de uma nova era no Brasil, em que menino veste azul e menina veste rosa. Questionada, a ministra disse à imprensa tratar-se de uma metáfora contra a “ideologia de gênero”. Só tem um problema: nesses termos, tal ideologia jamais existiu.
A ideia de que existiria uma ideologia de gênero foi gestada no âmbito da Igreja Católica durante a década de 1990, em reação ao uso do conceito de gênero em conferências internacionais de mulheres. Desde então, essa noção passou a permear nosso contexto político em diferentes momentos, sendo particularmente acionada em momentos eleitorais. Durante a campanha presidencial de 2018, novamente a suposta ideologia de gênero foi trazida ao centro do debate, associada a notícias falsas segundo as quais o candidato à presidência Fernando Haddad, enquanto prefeito de São Paulo, teria distribuído um “kit gay” e até mesmo uma mamadeira fálica para crianças em escolas públicas.
Afirmou-se, então, a existência de uma espécie de doutrina cujo objetivo seria orientar crianças em relação à sua sexualidade e ensiná-las a não se identificarem como meninas ou meninos. Apesar de inverídica, a ideia provocou pânico. Instalado o medo, parte da população relacionou o conceito a uma imposição que desvirtuaria crianças. Tais reações – incluindo as do próprio presidente eleito e de autoridades do governo – persistem e têm sido recebidas pela comunidade científica com perplexidade e preocupação, sobretudo por estarem pautando políticas públicas. No Plano Nacional de Educação e em muitos planos municipais e estaduais suprimiu-se, por exemplo, gênero como tópico a ser abordado em sala de aula ou na formação de professores.
Para defender as crianças da suposta ideologia, pessoas comuns e políticos adotaram discursos que restringem as discussões relativas a sexo e gênero a uma perspectiva normativa. Dentro dessa concepção, gênero seria imutável: nasceu menina é menina; nasceu menino é menino. Busca-se também reforçar estreitas convenções sociais e culturais relacionadas a homens e mulheres –meninas devem vestir rosa, meninos devem vestir azul. Da mesma forma, coloca-se como norma única o relacionamento afetivo e sexual com pessoas do sexo oposto.
Há aqui uma diferença fundamental. Enquanto os inimigos da suposta ideologia de gênero concentram-se em definições rígidas em relação a gênero e sexualidade, a perspectiva científica tende a ampliar esses limites, saindo de uma postura impositiva. Na Antropologia, elaborações conceituais construídas a partir de conhecimento científico, desenvolvido em mais de um século sobre diferentes realidades sociais, levaram à conclusão de que não existem atributos de sexo, sexualidade e gênero essenciais, imutáveis e universalmente válidos.
A discussão sobre gênero e sexualidade na comunidade científica constata que, em vez de ser mera questão fisiológica, os significados de masculino e feminino e as convenções sobre sexualidade são resultado de complexos processos históricos, sociais e culturais. Tais processos são fruto de articulações constantes de normas, convenções e regulações, que variam segundo as sociedades. Em outras palavras, sempre houve diferentes modos de ser homem e de ser mulher e significados distintos sobre masculino e feminino ao redor do mundo. Acontece o mesmo em relação às sexualidades.
Em 1935, a antropóloga norte-americana Margaret Mead atestou que o comportamento de mulheres e homens varia conforme a sociedade em que se inserem. Seu estudo, feito na região asiática da Nova Guiné, mostra que, entre o povo Arapesh, homens e mulheres tinham caráter mais dócil; entre os Mundugumor, ambos eram agressivos; e, por fim, entre os Tchambuli, as mulheres eram mais dominadoras e os homens mais passivos.
Na sociedade brasileira, por sua vez, acreditou-se por muito tempo que as mulheres seriam por natureza menos inteligentes e racionais que os homens e, por isso, não podiam votar. Apenas a partir de 1932, após intensa mobilização feminista, as mulheres conquistaram esse direito, ainda assim facultativo para as que não exerciam atividade remunerada. A igualdade entre os votos, obrigatório para homens e mulheres, só entrou no Código Eleitoral de 1965.
Somente em 1879, as mulheres brasileiras obtiveram o direito a ingressar no ensino superior e, quando o fizeram, houve muito preconceito. Evelina Bloem Souto, por exemplo, primeira mulher a frequentar o curso de Engenharia Civil da Escola de Engenharia de São Carlos, em 1957, foi obrigada a vestir roupas masculinas e a desenhar barba e bigode em seu rosto para realizar uma visita técnica. Em relação ao vestuário, aliás, vale lembrar que a convenção social pela qual meninos vestem azul e meninas vestem rosa surgiu na Europa e nos Estados Unidos apenas no século XX como estratégia de mercado – publicitários e lojas de roupas consideravam rosa a cor ideal para os meninos, tida como mais forte.
Explorando a diversidade de condutas e valores sociais relativos à masculinidade e feminilidade, os estudos de gênero têm contribuído para a compreensão de sérios e complexos problemas sociais como a violência contra a mulher (às vezes denominada de violência de gênero), a discriminação e violência contra pessoas LGBT, os padrões de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, a violência sexual, as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho, entre outros.
Na área da Educação, estudos têm registrado diferentes expressões relacionadas a gênero e à sexualidade nas salas de aula e à possibilidade de que essas expressões sejam vividas sem violência, de forma a não atentar contra os limites éticos e legais que regem a vida social. Isso auxilia educadores a compreenderem a importância do acolhimento da diversidade no espaço escolar, assim como a lidarem com desafios como a gravidez não planejada e a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os estudos de gênero têm operado em um horizonte que valoriza a defesa da pluralidade, dos direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana, a cidadania e a paz. A liberdade de pensamento, ensino e pesquisa nessa área é fundamental para que os pesquisadores continuem contribuindo com o desenvolvimento científico e ético do país.
Com sólido conjunto de dados de pesquisa, os estudos de gênero têm contribuído para a crítica sistemática a certas concepções, convicções ou crenças sem verificação científica. Ironicamente, discursos que tomam como universais e naturais concepções particulares sobre o que é ser homem ou mulher poderiam ser, eles sim, chamados de “ideologia de gênero”, no sentido de defenderem pontos de vista restritos como verdades absolutas e indiscutíveis.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Itamaraty se guia pelo obscurantismo na questão da igualdade de gênero
Por Pedro Serrano
Justiça manda Doria devolver às escolas apostilas que abordavam gênero
Por Ana Luiza Basilio
Autores e editoras disponibilizam obras sobre gênero gratuitamente
Por CartaCapital
A cruzada contra a “ideologia de gênero” desprotege crianças e adolescentes
Por Contee
Damares apoia decisão de retirar estudos de gênero de escolas de SC
Por CartaCapital
“Ideologia de gênero é coisa do capeta”, diz Bolsonaro a evangélicos
Por CartaCapital