Diversidade

Fragmentos de uma vida com consciência negra

Professora Rosângela Malachias escreve sobre a história de Zulmira Gomes Leite, uma das precursoras do Movimento Negro em São Paulo

Fragmentos de uma vida com consciência negra
Fragmentos de uma vida com consciência negra
Zulmira Gomes Leite, a Zul+, em foto nos Anos 50 (Arquivo pessoal)
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Quando uma mulher negra sobe, puxa a outra, já é frase conhecida no movimento de mulheres. Reforça a ideia da sororidade contrariando o estereótipo de que as mulheres, em geral, são desunidas. Mas, fui ‘puxada’, ops, convidada por Sílvia Maria a compartilhar histórias. Conhecemo-nos, quando Sílvia era supervisora escolar. Em silêncio vibrei ao vê-la – era uma mulher negra em posição de comando. Representatividade com consciência negra importa, sim, muito.

Agora, Sílvia generosamente universaliza e pluraliza o (seu) espaço ao literalmente enegrecer as caras das mulheres para falar, ou melhor, escrever. Então, aceitei como um presente. Dezembro é o mês do meu aniversário e do nascimento de Stephen Bantu Biko, internacionalmente conhecido como Steve Biko. Médico e ativista político foi assassinado por combater o regime sul-africano do apartheid utilizando-se da “consciência negra” – conceito teórico com potência prática.

O seu livro, Escrevo o que eu quero chegou às minhas mãos em 1992, com prefácio de Benedita da Silva. Li, reli e citei as reflexões na minha dissertação de mestrado em 1996. Em 2008, eu me mudaria para os Estados Unidos e lá ganharia, das mãos de uma colega, ativista sul africana, um exemplar original em inglês – I write what I think.

Então, como não posso prever o futuro usarei no momento o meu poder onisciente para escrever o que eu penso e o que eu quero. São fragmentos da história de uma jovem datilógrafa, que após se casar tornou-se inspetora de alunos, artista plástica e teóloga – Zulmira Gomes Leite, a Zul+.

Em 3 de junho de 1937, a jovem negra “Tida”, Maria Aparecida Gomes do Espírito Santo, solteira, deu à luz a uma menina pretinha e, em homenagem a uma de suas irmãs, nomeou-a Zulmira.

Em novembro desse ano, Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional. A Frente Negra Brasileira, às vésperas de se tornar um partido político negro sucumbiu ao golpe. Análises históricas podem explicar as contradições presentes na era Vargas, que a despeito de seu autoritarismo soube conquistar os pobres. Era admirado por muitas pessoas negras, dentre elas, a minha avó materna, “Tida” relembrava Getúlio, com gratidão, pois na gestão dele, os negros tiveram o acesso ao concurso público, o que a fez deixar de ser empregada doméstica, sem direitos trabalhistas, para se tornar funcionária pública, cargo de Servente da ETEC Carlos de Campos.

Zulmira teve a paternidade reconhecida, sem que fosse necessário reivindicá-la. Cresceu numa casa majoritariamente feminina, com sua mãe e tias, todas, empregadas domésticas e cozinheiras de famílias ricas residentes nos Jardins (Paulista e Europa). A São Paulo abastada restringia os horários de acesso e circulação das pessoas negras, durante o dia, um apartheid paulistano pouco conhecido e vigente nesta região nobre da cidade.

Mas, Zulmirinha, como era chamada, adorava caminhar nos domingos, quando uma “negrada linda, bem vestida” ocupava a Rua Direita, centro de São Paulo para se ver, flertar, admirar as vitrines, comer pipoca, e quando havia um dinheirinho a mais, “tomar coca-cola”. Zulmirinha também era levada à missa pelas tias católicas, à umbanda e ao candomblé, pelas tias e primas que frequentavam terreiros.

Desde a infância criava e arquivava desenhos, que vieram à tona após o adoecimento e morte de sua mãe, a Servente Tida, que ao partir para o Orum, pariu novamente dando a luz à artista plástica Zul+, assinatura assumida nas telas à óleo e gravuras que Zulmira decidiu não mais esconder.

Apesar do seu catolicismo praticante na devoção a São Benedito, Zul+ estudou, elaborou e expôs a Zenergia dos Orixás, pela primeira vez, em 1988, durante os festejos do Centenário da Abolição e ano da promulgação da Constituição Cidadã. Em 2001 uniu-se a Yalorixás de todo o país, como delegada eleita do GT Religião da Conferência Nacional contra o Racismo, na UERJ, evento que antecedeu a Conferência Internacional de Durban promovida pela ONU.

Máscaras. Obra de Zul+ (Fonte: site pessoal).

Em 2018, aos 82 anos, debilitada pelo câncer, quis votar no 1º turno das eleições presidenciais e ao retornarmos para casa, ela me pediu um favor. Dona Zul, bem séria, disse: Eu quero uma bandeira do Brasil sobre o meu caixão. Quero que, no lugar da frase Ordem e Progresso, vocês escrevam: “Zulmira Gomes Leite foi devota de São Benedito e Ativista do Movimento Negro”.

Eu perguntei a ela, “por quê, mãe? ” E com seriedade respondeu: “porque a bandeira do Brasil também é nossa, das mulheres negras”.

No dia 19 de maio de 2019, a promessa foi cumprida.

Coberta com a bandeira brasileira, Zulmira peitou os indivíduos e grupos que se posicionam abertamente contra os direitos das populações negra, LGBT…, mulheres feministas, MST, ou seja, das pessoas que estão em último lugar e permanecem, não por vontade própria, mas pela (o)pressão de grupos que propagam sua intolerância dizendo-se donos das cores verde e amarela. Zulmira recusou “a ordem e o progresso” e se colocou no centro, com os seus valores civilizatórios – o nome; a fé e a consciência negra em ação. Em seu último momento material na terra tomou para si e sobre si, a bandeira do Brasil.

Foi um ato político de reconhecimento pessoal, coletivo e ancestral da ação das mulheres negras ranqueadas na base da pirâmide social e econômica do país; mas também as primeiras quando se trata das desigualdades salariais, acrescidas pelos índices da violência doméstica. Globalmente, as mulheres negras ampliaram suas redes de ação, em prol do bem viver e para isso puxam outras mulheres para o alto.

Dentre os ensinamentos que recebemos na infância (falo aqui por meu irmão também) havia um mantra dito antes de irmos para a escola, uma prática orgânica de advocacy:- “Vão chamar vocês de negrinhos, levantem a cabeça e digam, sim, somos negros com muita honra”. Mas Dona Zul nos alertava: “se chamarem vocês de negrinhos sujos ou de macacos, reajam!”.

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