Diversidade

Exilado nos anos 70, ator diz: “Precisamos nos unir para fazer revolução”

Ciro Barcelos, o caçula do grupo Dzi Croquettes, conta sobre a censura sofrida na ditadura e os tempos atuais

Ciro Barcelos
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Em 1972, em plena ditadura, 13 homens se uniram para criar um espetáculo nada comum para a época: o Dzi Croquettes. Vestidos de mulheres, mas mantendo as características masculinas como pelos e barba, o grupo esteve em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro durante um ano, até que, pelo sucesso que conquistou, acabou descoberto pelos militares.

Como a liberdade era a bandeira defendida pelos atores, que dançavam e atuavam de forma bem sensual, o grupo composto por LGBTs foi censurado e convidado a se retirar do país, um nome bonito dado ao exílio.

 

“Atentado à família, à moral e aos bons costumes.” Essa foi a justificativa utilizada pelos militares na época para censurar os Dzi Croquettes, o mesmo argumento que o presidente Jair Bolsonaro utilizou recentemente para banir investimento público em séries e filmes que tratavam sobre o tema LGBT e que o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella intuiu para mandar recolher livros na Bienal.

Grupo Dzi Croquettes em 1972

O que os militares na época não imaginavam, é que o exílio do grupo seria um tiro no pé. Os atores foram para Paris e continuaram apresentando o espetáculo na capital francesa, sempre denunciando o que estava acontecendo no Brasil. O sucesso foi tão grande que algumas personalidades foram assistir ao grupo – uma delas, que posteriormente se tornou amiga do grupo, foi a atriz e cantora norte-americana Liza Minnelli.

Depois de dois anos no exílio, o grupo voltou para o Brasil e cada um seguiu seu caminho, tanto na arte quanto fora dela. Voltaram todos, exceto o caçula dos atores, Ciro Barcelos.

Ele tinha 18 anos quando entrou no grupo para se apresentar de batom vermelho e em cima de um salto alto. Ciro seguiu por mais oito anos em Paris, estudando e atuando, e voltou para o Brasil colocar em prática sua arte.

Foi o herdeiro oficial do grupo Dzi Croquettes e remontou a peça em 2012, na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, participou, junto com os outros quatro membros que ainda estão vivos, de um documentário, lançado em 2009, sobre o grupo que desafiou a ditadura do Brasil.

Ciro conta, em entrevista a CartaCapital, que a ideia de montar o texto na época foi exatamente para desafiar o sistema, que fazia ataques à arte e à liberdade. “Nós achamos que isso era uma boa forma de criticar o sistema homofóbico e ditatorial, mas com muito humor e dança”, conta.

O ator diz que está muito apreensivo com o caminho da política brasileira atual e enxerga o cenário da atualidade com mais preocupação do que na época do regime militar. “Além da questão dessa aparente ditadura que estamos caminhando e da homofobia, há a questão religiosa, que eu acho muito pior que o conservadorismo da época”, diz.

Ciro, que foi censurado e exilado, acredita que se a criação do Dzi Croquettes fosse hoje, haveria grandes chances de o governo barrar o espetáculo. Confira a entrevista completa:

Ator Ciro Barcelos

CartaCapital: Você participou desde o início da criação do Dzi Croquettes. O surgimento do espetáculo foi uma resposta à ditadura?

Ciro Barcelos: Sim, surgiu como resposta para o regime militar e também como uma estratégia para que nós pudéssemos trabalhar, porque na época as peças, em sua maioria, tinham uma temática muito política e muito engajada e os atores eram presos, apanhavam e as peças eram interrompidas. Então nós, a partir da ideia do Wagner Ribeiro, que foi o autor, começamos a trabalhar em cima do bloco de piranha. que é aquela produção dos homens que no Carnaval pegam as roupas das mulheres e saem para a rua de perna cabeluda, bigode, barba, com a intenção de brincar. Nós achamos que isso era uma boa forma de criticar o sistema homofóbico e ditatorial da época, mas com muito humor, dança e de forma também que a gente conseguisse driblar os militares e permanecer em cartaz.

CC: Todos da peça eram LGBTs?

CB: Sim, todos. Nós não nos classificávamos como LGBTs, nessa época não havia esse tipo de classificação. Na verdade éramos bissexuais e namorávamos com meninos e meninas, tínhamos muitas namoradas e namorados e não havia essa preocupação de hoje referente ao gênero, era uma outra realidade.

CC: A sociedade da época era homofóbica?

CB: Sim, claro, como a de hoje também , inclusive acredito que a de hoje é até mais. Embora se vivesse em uma regime militar, nós tínhamos uma liberdade sexual muito grande. Anos 70 era a época do amor livre. Então a gente vivia isso de uma forma muito plena. Claro que eu estou falando de uma minoria, mas que ao mesmo tempo foi muito resistente em meio a um regime tão severo como o militar.

CC: Como foi a aceitação das pessoas na época sobre a peça?

CB: Foi um sucesso incrível. O espetáculo estourou de cara e isso também foi o que incomodou os militares. Transgrediu a questão do teatro e logo virou um movimento que se expandiu. As pessoas começaram a assistir ao espetáculo vestido como a gente. Tinha um espetáculo no palco e outro na plateia. E logo começou a ser visto por muitos artistas. Era uma época em que a gente comungava muito as artes, não era essa coisa separada de hoje. Então nós tínhamos o pessoal da música, do cinema e do próprio teatro. Estavam lá Caetano Veloso, Gal Costa, diretores de cinema e de teatro todos juntos na plateia. Desde das famílias mais caretas até as mais modernas. Foi um ‘boom’ que chamou atenção do regime.

CC: Qual foi a justificativa utilizada pelos militares para exilar o grupo?

CB: Depois de um ano em cartaz, estávamos driblando os militares. Quando a coisa foi virando um movimento, que transgrediu o palco, alguns censores foram assistir e aí nos chamaram para prestar declaração. A partir daí, nos sentenciaram como atentado à moral e aos bons costumes da família brasileira, sobretudo pelo nu. Não foi tanto pelo texto, mas acima de tudo pela postura cênica e, claro, o travestimento. Mas eles não focaram nesse tema, justificaram pela questão do nu e sobre toda a proposta do espetáculo. A gente não estava propondo para ninguém que tinha que ser gay ou não ser gay. A gente fazia teatro. Nossa bandeira era a da liberdade.

Dzi Croquettes na montagem de 2012

CC: Vocês ficaram quanto tempo exilados?

CB: Fomos convidados a nos retirar. Ou seja, saia por bem ou vai sair por mal. Aí colocaram um prazo e fizemos uma semana de despedida aqui em São Paulo, com toda a polícia militar na porta do teatro fazendo barricada. O público enlouquecido querendo matar os militares. Embarcamos em um navio e fomos embora. Ficamos um ano em Paris, em cartaz. Depois o pessoal voltou e eu fiquei mais oito anos trabalhando e estudando lá.

CC: Desde que voltou, como avalia a sociedade brasileira? Até chegar a Bolsonaro, tivemos uma evolução no quesito artístico e social?

CB: Tivemos, sem dúvida, com muita luta e revolução. Com Bolsonaro, não sei onde vai dar, mas temos conquistas de leis que são muito importantes para os direitos humanos, de expressão, liberdade religiosa e sexualidade. Por outro lado, essa aparente liberdade desses direitos conquistados também suscita uma certa violência. Porque aqueles que não aceitam, não vão mudar de ideia por conta de uma lei, né? Então ela se esconde mais ainda e fica mais perigosa, está camuflada. Considero também que essa questão da divisão dos gêneros, para onde caminhamos, é uma coisa perigosa, pois é o que eles querem: nos separar. Na época, fizeram isso com a gente. Como dizia Che Guevara, ‘uma verdadeira revolução só se faz quando movida por um verdadeiro sentimento de amor’. E nós éramos movidos por isso. Então separaram. Manda Caetano pra um lado, Dzi pro outro e o problema está resolvido. Agora, a separação está acontecendo nessa falsa liberdade. O gay tem um comportamento, se veste de um jeito e frequenta tal lugar. Trans é uma outra coisa. Essa separatividade é que eu tenho muito medo, porque começa uma espécie de uma guerrilha interna. E tem lugar para todo mundo.

CC: Você passou pelo regime militar, foi censurado e agora tem novamente um militar no poder que já censurou algumas obras com conteúdo LGBT. Você acha o momento atual parecido com aquele dos anos 70?

CB: Eu acho que estamos encaminhando para esse período, sim. Acho que até pior. Porque além da questão dessa aparente ditadura, e da questão da homofobia, há a questão religiosa, que eu acho muito complicada. Eu sou um cara espiritualista, universalista, mas essa questão do comportamento do evangélico castrador e fundamentalista realmente me assusta bastante. E o nosso presidente infelizmente caminha para esse porões do fundamentalismo evangélico.

CC: Se vocês voltassem hoje, sob o governo Bolsonaro, seriam censurados?

CB: Periga que sim. Até porque o Dzi que eu montei em 2012 é muito mais político do que o que nós montamos na época. Nesse eu literalmente assumo uma postura política. Há um perigo no ar e eu não gostaria que isso acontecesse.

CC: A cultura está sendo atacada, e com o apoio de uma parcela significativa da população. Onde foi que erramos?

CB: Não deu errado. Agora, com a internet, as pessoas se manifestam atrás dos panos, escondidas em seus computadores. É o grande erro. Isso estava obscuro, camuflado. Não há nada escondido que não venha à tona. Pessoas não mudaram de opinião. Elas estão apenas mostrando as caras.

CC: Qual a saída para a resistência?

CB: A união. Essa união precisa acontecer urgentemente em todos os aspectos. Está todo mundo girando em torno de si. Está todo mundo gritando por resistência e liberdade, mas, ao mesmo tempo, girando em torno do seu próprio umbigo. Dando voltas e girando em torno de si mesmo. E isso é o que eles precisam, é a maior arma deles: a desunião. Precisamos nos unir para fazer revolução.

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