Diversidade

“Eu moro na rua, mas ainda sonho”. A vulnerabilidade das pessoas trans que vivem nas ruas de SP

Projeto ‘Existimos’ expõe a realidade de uma das populações mais afetadas pela pandemia do coronavírus

Chiara e Chiara retratadas pelo projeto "Existimos". Foto: Reprodução.
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“A resistência que tivemos de chegar vivas até aqui é a mesma resistência que, com  a ajuda de vocês, podemos mudar essa realidade. Eu comecei minha vida com sonho de fazer artes cênicas. Eu já trabalhei como telemarketing, orientadora social, mas tive outras escolhas que fizeram eu sonhar ainda mais. Alcançar um sonho é algo que não podemos parar. Eu moro na rua, mas eu ainda sonho. Moramos aqui, mas trabalhamos. Não estamos aqui para brincar. O que acontece conosco, me desculpem, mas é consequência da realidade. Nos jogaram aqui e vocês podem nos tirar daqui”.

Esse é o depoimento da Chiara, uma mulher trans de 27 anos que vive nas ruas da cidade de São Paulo. O depoimento de Chiara foi gravado e divulgado no projeto “Existimos”, um perfil criado no Instagram para compartilhar histórias de pessoas que vivem em vulnerabilidade social no país.

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Estamos todas emocionadas com a lindíssima narrativa da Chiara, estamos juntas com você e vamos nos retratar. Existimos.

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O criador do perfil é o consultor de negócios André Nadolny, de 32 anos. Morador da cidade de São Paulo, ele arrecada dinheiro para comprar barracas, roupas e comida para as pessoas trans em situação de rua. “Eu sou do interior. Cheguei em São Paulo já com a pandemia da covid-19. Eu vi que tinha muita gente indo viver nas ruas por conta disso, e muitas eram pessoas trans. Aquilo me chocou e eu coloquei em prática um projeto sobre visibilidade”, conta André.

A primeira postagem foi feita no dia 16 de maio contando a história de Luna, uma mulher trans de 28 anos que vive nas ruas do centro da capital. Um mês e meio depois, o perfil conta com quase 100 mil seguidores e com um número significativo de doações.

André conta que seu projeto se inspirou no Lampião da Esquina, um jornal do movimento LGBT brasileiro que circulou durante os anos de 1978 e 1981. “A gente está conseguindo amenizar o momento indo até elas e levando uma palavra de conforto, entendendo o contexto, conversando e fazendo com que elas se expressem para o mundo. Não posso eu falar, elas precisam de voz. Eu não tenho lugar de fala, pois sou gay, branco e cisgênero. As trans sempre foram marginalizadas desde a década de 1970, então precisamos nos unir para mudar essa realidade”, diz o consultor.

Projeto retrata cenário da população T no Brasil

Laura está morando na rua porque foi expulsa de casa pela família. A carioca de 29 anos conta que tenta sobreviver com seu parceiro vendendo bebidas, mas com a pandemia nem isso estão conseguindo. “Ser trans é muito difícil.  Não dá para ficar esperando por esse auxílio do governo. A gente não consegue fazer nada”, diz ela que teve o pedido de auxílio emergencial do governo federal negado.

A história de Laura, Chiara, Luna e todas as outras retratadas no projeto Existimos exemplifica a realidade das pessoas transsexuais no país. Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos, menos da metade da população cisgênera, que é de 76.

Além de lutar para viver, 90% da população trans no Brasil dependem da prostituição para ganhar dinheiro. As histórias compartilhadas nos perfil do projeto retratam a prostituição como fonte de renda, a violência, as drogas e o abandono, algo comum entre a comunidade.

Com a pandemia do coronavírus, esse cenário só piorou. Segundo boletim divulgado pela Antra, no primeiro semestre de 2020, em plena quarentena, houve um aumento de 39% em assassinatos de pessoas trans comparado com o mesmo período de 2019.

Fortaleça uma pessoa trans

Por conta deste cenário, a deputada estadual de São Paulo Erika Hilton (Psol) criou um projeto chamado “Fortaleça uma Pessoa Trans”, que reúne diversos coletivos de acolhimento a essa população.

“A campanha nasceu da necessidade de fortalecer pessoas que são atendidas por entidades como a Casa Chama, Casa 1 entre outros. Há um desinteresse do Estado para com essa população, principalmente agora nesta crise causada pela pandemia do coronavírus. Com isso, estamos conseguindo proporcionar as necessidades primárias e básicas para elas”, conta a deputada.

Dados do censo da prefeitura de São Paulo, cidade onde o projeto Existimos e a deputada Erika atuam, mostram que a população de rua chegou a 24.344 pessoas em 2019, destas 386 trans.  Com a pandemia, entidades de direitos humanos relatam um aumento da população sem casa.

O Cedec (Centro de Estudos em Cultura Contemporânea) organiza uma pesquisa que buscará saber como a doença atingiu a população T e como essas pessoas garantem o sustento e o acesso aos equipamentos públicos de saúde durante a pandemia.

“A máquina pública não quer fazer esse debate. O pais é calcado em cima de uma logica cisgênera hegemônica. Não temos um parlamento que esteja preocupado com as pessoas trans. A ausência dessa preocupação gera uma ausência de dados. Não sabemos quantas estão nas ruas, as secretarias não produzem isso. Há um desinteresse com essa população”, explica Erika.

“Essa população sofre com expulsão escolar e diversas formas de exclusão do mercado de trabalho, restando apenas a prostituição como alternativa de sobrevivência para 90% das mulheres trans. Com a necessidade de isolamento, essas profissionais se encontram impossibilitadas de garantir seu sustento e estão passando por situações profundamente precárias: precisam de moradia, alimentos, produtos de higiene pessoal entre outras coisas básicas”, concluiu a deputada.

A Smads (Secretaria de Assistência Social da prefeitura) afirma que oferece aos moradores de rua todos os serviços de assistência disponíveis, mas que a adesão é voluntária. A pasta informa ainda que mantém 31 serviços direcionados às mulheres, somando 2.546 vagas. Também diz que criou sete novos equipamentos emergenciais com mais 594 vagas para pessoas em situação de rua.

A  Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo informou que a população LGBTI da cidade também  é assistida pelo Programa Cidade Solidária, que durante a pandemia entregou 1.320 cestas básicas e kits de higiene em esforços da SMDHC no programa intersecretarial. “Foram atendidos os três Centros de Cidadania LGBTI, nas regiões Norte, Leste e Sul, com foco nas famílias LGBTI em vulnerabilidade, bem como artistas, DJs, boates LGBTI afetados pela pandemia”, diz.

“Informamos ainda que os Centros de Cidadania LGBTI da SMDHC continuam em funcionamento durante a pandemia para atendimento psicológico e social e toda assistência necessária ao público LGBTI, assim como o programa Transcidadania, com assistência para mulheres transexuais, homens trans e travestis inscritos e que recebem uma bolsa auxílio mensal no valor de R$1097,25”.

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