Cultura

Escritor e diplomata aborda processo de descoberta da homossexualidade

Para Alexandre Vidal Porto, autor do livro “Cloro”, os homossexuais com maior status precisam se mostrar à sociedade. Sua nova obra relata os conflitos de quem não se assume

O escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto em conversa sobre seu terceiro romance, Cloro (Foto: Cauê Gomes)
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Alexandre Vidal Porto é um escritor e embaixador que tomou a decisão de expor sua orientação sexual fora de quatro paredes. Casado há 16 anos com um americano, ele foi um dos poucos diplomatas de sua geração a falar abertamente de sua natureza, inclusive no Itamaraty, onde trabalha desde os 22 anos. Foi a partir de sua experiência que decidiu escrever Cloro (ed. Companhia das Letras), seu terceiro romance. Com pontos autobiográficos, a obra mostra o processo de descoberta de um homem sobre sua homossexualidade.

Constantino, personagem principal do livro, é um advogado perto dos 50 anos. Com mulher, filha e um padrão de vida alto, tem uma vida “quase perfeita” se não fosse ela baseada em mentiras e padrões sociais que divergiam da própria natureza. “Tem gente que passa a vida fugindo de uma coisa sem compreender que não existe fuga possível, que não adianta lutar, que não adianta querer ter controle. Foi o que aconteceu comigo, e, antes que minha memória se apague, preciso entender como gastei minha vida”, diz o personagem principal e narrador.

É no decorrer de 24 histórias contadas por Constantino que o leitor acompanha os conflitos internos e o processo de descoberta (ou admissão) da sua identidade. A revelação, a partir da primeira experiência sexual com um homem, é semelhante a de seu criador, Alexandre Vidal Porto, porém, é justamente a partir desse momento que os caminhos dos dois passam a ser bastante diferentes.

O personagem decide manter sua descoberta em segredo. Porto não. “Se eu não tivesse contado para ninguém, tivesse deixado dentro de mim, escondido, acho que eu teria me tornado o Constantino: teria me casado com uma pessoa que não sabe nada da minha vida, sido infeliz e feito outras pessoas infelizes. Foi nesse momento que eu escapei da mentira”, diz o diplomata-escritor.

Livro Cloro, do escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto(Foto: Cauê Gomes)

Desde então, ele milita se expondo. Acredita ser essa a maneira com que pode contribuir para naturalizar algo que por si só é natural.”No fundo, quero que a orientação sexual de uma pessoa seja irrelevante”, explica.

“Os gays são muito mal compreendidos, mas uma parte da culpa é da comunidade gay, que não se mostra. Então a gente acaba sendo vítima de estereótipos”.

Na entrevista abaixo, Porto detalha a importância de pessoas com altos cargos públicos e com menos riscos serem exemplos para aqueles que vivem em situação mais vulnerável, conta os pontos de sua vida presente na obra, a experiência dentro do Itamaraty, os avanços que viu no decorrer dos anos e como vê a política externa brasileira. Leia:

CartaCapital:  Você já disse que sua exposição como homossexual é uma obrigação cívica. O que quer dizer com isso?
Alexandre Vidal Porto: A minha opinião é que os homossexuais, sobretudo os homossexuais que são menos oprimidos ou que têm mais condições de lutar contra a opressão maior – ou seja, que estão bem colocados, que têm dinheiro, que têm uma rede de segurança social – precisam ter uma solidariedade cívica, mas, sobretudo, um dever cívico de representar uma comunidade enorme e que é muito vulnerável.

Fico chocado quando vejo pessoas em posições altíssima, como ministros de Estado que são gays, sabem que são gays, levam uma vida gay, mas na frente do público são como aquelas bonecas Barbies que você tira a roupa e não tem nem pinto e nada ali. Acho isso horrível e degradante para a construção de uma cidadania e de um país justo, para a aceitação de uma minoria que sofre historicamente.

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Entendo as pessoas que estão em dúvida, mas desprezo aqueles que não têm nada a perder e que não têm essa generosidade com os gays pobres, os gays que apanham, os gays que são assassinatos, sabe? Os gays são muito mal compreendidos, mas uma parte da culpa é da comunidade que não se mostra. Então a gente acaba sendo vítima de estereótipos.

É fácil você ser gay numa Parada Gay, todo cheio de glitter, com uma máscara e dançando. O difícil é ter essa parada todo dia, você se mostrar todo dia. É uma irresponsabilidade, uma maldade esse gay que tem poder para ajudar, para influenciar e não influenciam.

CC: A homossexualidade ainda é um tabu dentro do Itamaraty?
AVP:  Hoje, não. As pessoas que entram no Itamaraty já entram com parceiros do mesmo sexo, casados, porque hoje você tem uma proteção legal. Na minha época não havia essa proteção. Você tem todo o direito de não gostar de gay, mas de discriminar, você não tem direito. Por isso é necessário ter remédios jurídicos para se defender. Não é engraçado ser discriminado.

Eu, quando fui para o Itamaraty, tinha dúvidas se era gay ou não. Demorei muito para aceitar e achava que se eu assumisse essa minha verdade, essa minha identidade, estaria proscrito da vida.

A diplomacia é uma profissão que atrai muitos gays e não é uma um fenômeno brasileiro. Ela atrai gays no mundo todo. Se você olhar outros serviços diplomáticos no mundo você tem uma proporção considerável de gay. Tenho uma interpretação disso que é totalmente de botequim: esse autoexílio que a diplomacia impõe não é um movimento natural. Acho que é um momento de reinvenção deliberado em que eu vou para um outro lugar onde eu possa ser uma outra pessoa.

O que acho triste é ver que muito recentemente tivemos um chancelar homossexual que jamais tocou nesse assunto e que teria uma grande força para fazer. É muito ruim você ver quem tem força para defender não defende. É contra isso que me bato. Não sou nada, sou uma pessoa politicamente fraca, mas eu sou um embaixador, tenho um diploma de Harvard, tenho três livros escritos, fui colunista. Isso de alguma maneira faz com que um menino de 16 anos, que diga para o pai que é gay e ouve dele: “- A sua vida se destruiu. Você não tem futuro”, possa responder: “Não, eu posso ser um o Alexandre Vidal Porto” ou “Posso ser um deputado como o Jean Wyllys” ou “Eu posso ser um ministro das relações exteriores”, se é que esse ministro das relações exteriores se revelasse.

É preciso entender que a natureza humana não pode ser um impeditivo ou uma limitação das possibilidades existenciais de nenhum jovem. É por isso que eu me exponho tanto. Queria que os homossexuais pudessem se ver uns nos outros, não apenas como instrumento de expressão sexual, mas de construção social, mostrando que no fundo a orientação sexual é irrelevante. A orientação sexual só diz respeito às pessoas que você terá um envolvimento sexual. Tirando isso, eu não quero ser definido pela minha orientação sexual.

CC: Sua entrada na diplomacia foi um autoexílio?
AVP: Fui para o Itamaraty com 22 anos para sair de Fortaleza. Fiz minha faculdade lá, mas não me adaptei bem. Trabalhei lá por um ano ainda, mas só pensava em sair de lá. Para mim, sim, foi autoexílio.

Eu era muito caretinha, era muito homofóbico. Posso dizer isso sem medo, porque eu tinha um modelo de quem eu queria ser. Queria ser o garoto exemplar e o que estragasse esse meu plano, eu recusava. Demorei sete anos, tendo um conflito sério, tentando ser o garoto ideal. Logo no início do meu trabalho no Itamaraty, fui mandado para Nova York para servir junto a ONU. Foi meu primeiro posto. Lá eu decidi ser cínico, pensava: “Eu não sei o que eu quero, então eu vou ser o que eu gostaria de ser”.

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Só que houve um momento que fiquei numa situação em que a minha namorada queria engravidar. Era o começo da internet e antes, daquele momento, não tinha acesso visual a coisas que eu nunca tinha visto, como um homem nu – o único homem nu que eu havia visto era meu irmão. Com essa possibilidade, comecei a ficar cada vez mais curioso. Isso é uma coisa que escrevo no Cloro: “eu só não entendia que curiosidade era um outro nome para atração”.

Na hora de tomar decisão se eu ia casar, se eu ia ser pai ou não, minha namorada teve que sair dos EUA por dois meses. Foi nesse momento que resolvi tomar o meu destino nas próprias mãos e coloquei um anúncio na internet, muito cândido, explicando qual era minha situação: “Virgem procura, sabe?” (risos). Não tinha outras possibilidades porque no meu mundo não havia homossexuais. Aliás, eu excluía os homossexuais do meu mundo.

Acabei marcando um encontro com uma pessoa e tive uma experiência sexual bem superficial, mas foi muito mais significativo do que todas as outras experiências pregressas que tive. Foi nesse momento que ficou muito claro para mim. Não fiquei no armário depois dessa relação: “Sou gay, não resta dúvidas”.

Quando minha namorada voltou para Nova York, falei para ela e fui falando para outras pessoa, mas não foi simples. Eu tinha 31 anos de idade e a sensação que tinha é que ia perder minha vida, ia terceirizar minha vida.

CC: O relato da sua experiência pessoal entra muita na história do Constantino, o narrador e personagem principal da obra. Você chegou a dizer que o Constantino é o homem que você poderia ter sido, mas não foi.
AVP: Sim, juntando essa biografia com a do Constantino. No momento em que eu resolvi deliberadamente ter uma experiência é que minha história e a do Constantino se separam.

Se nesse momento eu não tivesse feito isso ou se tivesse feito e não tivesse contado para ninguém, tivesse deixado dentro de mim, escondido, acho que teria me tornado o Constantino: teria me casado com uma pessoa que não sabe nada da minha vida ou pelo menos de coisas tão essenciais como a minha orientação sexual, e teria sido infeliz e feito outras pessoas infelizes se isso fosse na mentira. Foi nesse momento que eu escapei da mentira. Até um determinado momento eu estava junto com o Constantino, eu vim para um lado, ele foi para o outro. Eu sou uma pessoa feliz. É até meio bobo falar isso, mas eu tento ser feliz e luto muito pela felicidade.

CC:O narrador da primeira parte do livro está morto. Você acha que só a morte traz a franqueza necessária?
AVP: Isso é uma coisa que me pergunto porquê. A ideia de que ele tenha sido o mais sincero possível. Ele diz: morto aqui, não faz mais sentido mentir.

O Constantino foi vítima da sua própria mentira porque ele viveu 49 anos de mentira, terceirizando a vida, vendendo seus sentimentos. No último ano de vida, ele descobre o poder curativo e regenerativo da verdade. Quando morre, ele está preparado para mudar a vida. Ele vai falar para a Débora, quer essa outra vida só que não deu tempo. Ele está sendo verdadeiro até onde ele conhece dele. Claro que não necessariamente a verdade dele é absoluta.

As histórias que ele conta são mais ou menos o arco da sua vida, é a apresentação dele. É, digamos, a justificativa dele para ter sido quem ele foi. Então ele está levando aquilo com ele: quem é que vem aqui comigo? Ele entende que não tem mais futuro. O Constantino é um homem sem futuro, ele morreu,  não está apostando em nada. O presente é obscuro. Ele não tem nada a perder, a única coisa que ele tem a perder é a verdade. É um exercício de honestidade. Ele só pode se salvar se for sincero e honesto.

CC:O livro é dividido em duas partes. Primeiro, o relato do narrador  que é o personagem principal; depois vem a parte em narrada pelos personagens que viveram com o Constantino. Por que fez questão dessa segunda parte na obra?
AVP: Achei injusto deixar tudo só pela interpretação do Constantino. Queria ouvir o que os outros pensavam dele até para ver se eu entendia melhor o meu personagem. O Constantino é muito egocêntrico, ele usa as pessoas em volta. Queria saber como é que esses outros se sentiam em relação a uma pessoa tão egocêntrica, que envolveu aquelas pessoas todas numa mentira. Até para comprovar o que ele falava era verdade. Se aquilo que ele dizia fazia sentido para os outros.

CC: Falando em diplomacia e dos movimentos atuais, o que pensa do globalismo? É um caminho no qual o Brasil deveria se manter nos próximos anos?
AVP: Eu acho que estamos passando por um momento de inflexão importante e não é uma questão brasileira, mas global. A gente vê essa quantidade de governos que rejeita esse approach globalista kantiano de uma grande sociedade global. É um fenômeno que chegou ao Brasil. O Brasil é um país de lideranças na América do Sul. As coisas chegam antes no Brasil que ao redor da América Latina.

Não entendo direito a gênese dessa rejeição ao globalismo. Adoro esses princípios globais, a ideia de humanidade comum, que temos direitos iguais, que habitamos uma sociedade global, mas isso tem a ver com a minha formação humanista e como diplomata. Meu primeiro posto foi junto a missão da Nações Unidas, fui delegado de sete assembleias gerais, e lá você entende a importância de entrar em acordo, da importância de uma concordância global entre os países. Em geral, as resoluções da ONU são declarações de consenso.

Não sei se entendo exatamente as ideias que foram anunciadas pelo futuro ministro Ernesto Araújo, que foi meu contemporâneo no Rio Brando e quem respeito muito. E até onde entendo, não concordo, embora eu respeite. Estou em compasso de espera. Preciso ler mais e entender melhor. O que sei é que não é um fenômeno brasileiro, mas global que chega ao Brasil de forma bem simplificada.

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