Diversidade
De olhos abertos
Sebastião Reis Júnior, ministro do STJ, lança livro para dar visibilidade às mulheres transgênero encarceradas


O Superior Tribunal de Justiça irá sediar, em 22 de junho, o lançamento de Translúcida, obra coletiva organizada pelo ministro Sebastião Reis Junior. Composto de 35 textos, duas ilustrações e 38 imagens de presas transgênero fotografadas pelo próprio magistrado no Centro de Detenção Provisória Pinheiros II, em São Paulo, o livro tem como objetivo central provocar um debate sobre direitos humanos, cárcere e o direito à própria identidade. Em entrevista a CartaCapital, Reis Jr. explica as razões de buscar dar visibilidade às pessoas trans encarceradas.
CartaCapital: Como nasceu o projeto Translúcida?
Sebastião Reis Júnior: Foi há uns quatro ou cinco anos, quando fiz uma visita ao presídio de Pinheiros, em São Paulo, e tive a oportunidade de conversar com presas transgênero. Depois, vi o livro Ausência, da fotógrafa Nana Moraes, com imagens de mulheres encarceradas, sempre acompanhadas do relato sobre o sentimento de ausência que toma conta de cada uma delas. Foi o que me inspirou. Usei as fotos como provocador do sistema e distribui para algumas pessoas. Cada uma escreveu o que quis. Algumas escreveram cartas, outras optaram por contos. Teve até quem preferiu desenhar e fazer um texto técnico. Os autores do livro têm origens e profissões distintas, e os textos acabam por refletir essa diversidade.
CC: Por que é tão importante dar visibilidade às presas transgênero?
SRJ: A ideia é instigar o debate. Não quero assumir o protagonismo das mulheres transgênero, não tenho essa legitimidade. Por outro lado, várias pessoas trans participaram dessa obra colaborativa, a exemplo da deputada Erika Hilton. Mas a ideia é apenas estimular o debate sobre a situação das mulheres trans encarceradas, um tema pouco discutido na sociedade.
CC: As prisões estão preparadas para receber com dignidade esse grupo?
SRJ: Não, elas sofrem preconceito da própria população carcerária. Não podemos, porém, exigir que os presos aceitassem as mulheres transgênero sem que o próprio sistema, a direção do presídio, os agentes penitenciários, as aceite. O exemplo deve vir de cima. Há a necessidade de uma mudança cultural, de uma nova estrutura no sistema prisional. Confesso não saber qual é a solução ideal. Talvez quem acompanha o dia a dia nas prisões possa apresentar algumas alternativas, mas a mudança deve ser estrutural.
CC: As mulheres trans por vezes são discriminadas pelos próprios familiares, expulsas de casa. Como entender tamanha rejeição?
SRJ: O preconceito é um fenômeno cultural. Infelizmente, não vamos superar esse problema de um dia para o outro. É um processo de longo prazo. Precisamos discutir e compreender melhor essa questão. A aceitação da diversidade não deve ser cobrada só das famílias, e sim de toda a sociedade.
CC: A falta de oportunidades de trabalho leva muitas mulheres trans à prostituição. Faltam políticas específicas para esse segmento, não?
SRJ: Os governos deveriam enxergar as minorias com olhos diferenciados. Reitero, o preconceito é um fenômeno cultural, também marcado pela desinformação e pelas deficiências de nosso sistema educacional. O Estado precisa assumir suas responsabilidades. À luz do Direito, a mulher trans não é diferente da mulher ou do homem cisgênero. São pessoas que merecem respeito e consideração, cidadãs inteligentes, preparadas para trabalhar em qualquer ramo ou atividade. O fato de ser uma pessoa trans não a torna inábil para exercer a medicina, a advocacia, a docência ou qualquer outra profissão. As barreiras existentes são fruto do preconceito.
A aceitação da diversidade não deve ser cobrada só das famílias, e sim de toda a sociedade
CC: Muitas igrejas evangélicas, sobretudo as da vertente neopentecostal, tratam a transexualidade como um grave pecado. Isso não reforça essa visão preconceituosa à qual o senhor se refere?
SRJ: São diversos fatores. Seria preciso uma reflexão profunda, retroagir no tempo para saber o que aconteceu, a razão dessa raiva injustificável. Existe uma carga religiosa? Pode ser. Mas quais seriam as outras razões para isso? Não tenho condições de apontar culpados, nem de dizer quem contribui mais ou menos para todo esse preconceito.
CC: O enrosco é que grupos conservadores têm interditado o debate sobre as questões de gênero e sexualidade dentro das escolas, que em tese seriam os locais mais apropriados para discutir e combater preconceitos.
SRJ: É verdade. Você só derruba um preconceito quando mostra a realidade, quando demonstra que ele não tem razão de existir. Mas para isso é preciso educar, treinar, informar, ensinar as pessoas. O lugar apropriado é a escola. O debate entre professores, pais, alunos, educadores é extremamente importante, essencial e oportuno. Deve acontecer.
CC: Nos últimos anos, mulheres trans passaram a ocupar espaços no Legislativo. O senhor acredita que isso contribui para a superação do problema?
SRJ: Sem dúvida. A ocupação de espaços de poder é fundamental para derrubar preconceitos arraigados. Ao ver pessoas trans nos parlamentos, nos tribunais, nas escolas, a população começa a perceber que elas têm a mesma capacidade laborativa, o mesmo caráter, a mesma dignidade que qualquer outra pessoa. Não difere em nada. O fato de ser uma pessoa trans não a torna nem melhor nem pior que qualquer outra.
CC: Qual o maior aprendizado que o fotógrafo Sebastião Reis deixou ao ministro Sebastião Reis após essa experiência?
SRJ: A fotografia me ensinou a enxergar as mulheres trans como pessoas comuns, pessoas que têm medo do futuro, se preocupam com a reinserção na sociedade, sofrem com o preconceito e têm dificuldades para entrar no mercado de trabalho. Ao conhecer suas histórias de vida, fiquei sensibilizado pelos relatos de abandono familiar, de falta de apoio, de serem aceitas até mesmo por colegas do cárcere. Qual a chance dessas mulheres conseguirem se reinserir na sociedade diante de tanto preconceito? Uma delas me respondeu: “Tentei sair, trabalhar, não consegui. Fui para a prostituição, não ganhava o suficiente, voltei a roubar e estou aqui de novo”. A sociedade erra miseravelmente ao encarar o presídio como um mero instrumento de punição, de castigo. Isso vale para todos os egressos do sistema prisional. Mais cedo ou mais tarde, todos eles voltarão para o convívio social. Será que melhores ou piores? •
Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.
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