Diversidade

Como o Alzheimer afeta quem vive na periferia?

Demora no diagnóstico e precariedade da infraestrutura das cidades penaliza ainda mais os portadores mais pobres da doença, envolvendo a família inteira

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Valderice do Nascimento ainda trabalhava como empregada doméstica quando começou a se esquecer das coisas. Vez ou outra a patroa reclamava do fogo aceso à toa. Vanusa, uma das filhas de Valderice, assumiu os cuidados da mãe e a levou ao médico. Não deu outra. Valderice estava com Alzheimer. Vanusa abandonou o emprego de auxiliar de enfermagem e se mudou para a casa da mãe na Brasilândia, zona norte de São Paulo.

As histórias de Vanusa e Valderice e de outras quatro famílias estão registradas no documentário “Alzheimer na periferia”, lançado no dia 4 de setembro em São Paulo. E representam um pequeno recorte de um quadro em crescimento no Brasil e no mundo: o dos pacientes com Alzheimer.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 47 milhões de pessoas acima de 60 anos no mundo tem algum tipo de demência – a maioria delas com Alzheimer. Até 2050, com o envelhecimento da população, esse número deve triplicar. Só no Brasil, a estimativa é que 1 a 1,5 milhão de idosos sofram com a doença.

Não é qualquer enfermidade. O Alzheimer afeta a família toda. Por ser uma doença neurológica de caráter progressivo, aos poucos (num período que pode se estender de dois a 20 anos) a memória do paciente se esvai. E alguém precisa assumir as rédeas da vida dele.

Assim como Vanusa, Paulo Sadex também largou a rotina para cuidar da tia Leonor. “Me mudei para cá e tudo mudou. Já tive uma vida bem ativa. Infelizmente, hoje não dá”. Ele se lembra de uma vez que saiu para comprar cigarro, perto de casa, e quando voltou a tia estava em prantos porque não conseguia encontrá-lo.

Quando se trata de famílias da periferia, os desafios só aumentam. A começar pelo risco de desenvolver Alzheimer. Segundo estudos, além do histórico familiar e idade, outro fator de risco é a baixa escolaridade (perfil da maioria dos idosos de periferia). Como tendem a não praticar trabalhos intelectuais, com poucos estímulos cerebrais, a demência se desenvolve com maior facilidade.

Além disso, não há qualquer infraestrutura que facilite a mobilidade desses pacientes em casa e no bairro onde moram. “No documentário, você percebe que não há qualquer adaptação nas casas nem para um idoso saudável. Cheio de escadas. Imagine, então, para um idoso doente”, conta Jorge Félix, autor do argumento do documentário e especialista em envelhecimento populacional.

E há ainda a dificuldade em chegar ao diagnóstico. Segundo Vera Caovilla, uma das fundadoras da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), em alguns cantos do País a primeira consulta pelo SUS demora meses – ou até dois anos. “Um tempo atrás, aqui na capital paulista, o atendimento com o clínico geral demorava de 6 a 8 meses”, explica.

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Essa demora toda impede o início rápido do tratamento – e, por vezes, até impossibilita o recebimento de remédios custeados pelo governo. “É um critério deles, se a doença estiver já em estágio avançado, não entregam os medicamentos”, conta Caovilla. O Alzheimer tem três estágios – no mais avançado, o paciente quase não tem mais autonomia, mal consegue se comunicar ou se locomover e pode apresentar incontinência urinária e fecal.

“Normalmente os velhos já são deixados de lado na área da saúde e atendimento. Velho demenciado, então, é pior ainda”, critica Caovilla. Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil tinha, em 2016, a quinta população mais idosa do mundo. Até 2030 teremos mais idosos do que crianças de zero a 14 anos. Tudo isso tem um custo alto. Segundo dados do IBGE, 75,5% dos idosos têm doenças crônicas e 70% dependem do SUS.

Os pontos altos do SUS

Ainda assim, nem tudo funciona tão mal no sistema público de saúde. Espalhados pelo País, as unidades da Saúde da Família incluem, entre outros projetos, o Programa Acompanhante de Idosos (PAI) e os Centros de Referência em Atenção à Saúde do Idoso.

Em São Paulo, existem os Centros de Referência do Idoso – os CRIs. Foi lá que Vanusa fez cursos para aprender a cuidar melhor da mãe. E onde vai frequentemente para conversar com outras cuidadoras. “Você se sente bem quando conversa com as pessoas que têm as mesmas coisas. É muito bom. Hoje na volta já vim tranquila, estava tão bom que por mim eu tinha ficado mais um pouco”, relata Vanusa, no documentário, após voltar de um desses encontros.

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Quase todos os personagens contam unicamente com a assistência do SUS. Maria José Pereira cuidou do marido Daniel durante todas as etapas de desenvolvimento da doença. Buscava fraldas e remédios de alto custo em uma Unidade Básica de Saúde. “Também pego leite do governo e tudo mais que eu tiver direito, vou atrás”, contou. O marido faleceu neste ano.

Serviços básicos que ainda garantem um pouco de cuidado à população mais pobre. “O problema é que, na prática, ainda não funciona para todo mundo, porque nem todos lugares possuem centros com equipes médicas que vão até a casa dos pacientes”, explica Caovilla. E, no fim das contas, cuidadores sofrem tanto quanto os pacientes. “É um impacto econômico que recai na família. É preciso levar mais equipamento e estrutura médica para as periferias”, completa Félix.

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