Diversidade

Chamar alguém de “capitão-do-mato” pode ser uma injúria racial?

Ciro tornou-se alvo de investigação pelo Ministério Público por usar expressão contra Holiday. Declaração divide opiniões no movimento negro

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Na última quinta-feira 12 o pré-candidato à presidência pelo PDT Ciro Gomes tornou-se alvo de um inquérito policial do Ministério Público de São Paulo por conta de uma investigação de crime de injúria racial. A ação contra o pré-candidato aconteceu depois que ele categorizou o vereador paulista Fernando Holiday (DEM-SP) como “capitãozinho-do-mato” durante uma sabatina na rádio Jovem Pan no dia 18 de junho.

Ao ser questionado pela jornalista Vera Magalhães como se daria uma possível aliança entre o candidato e o DEM, Ciro explicou que a parceria só ocorreria com um acordo para o futuro. Na tentativa de mostrar as diferenças ideológicas entre ele e o DEM, o ex-governador do Ceará destacou o posicionamento político do vereador: “Você imagina esse Fernando Holiday, o capitãozinho-do-mato. A pior coisa que tem é o negro que é o usado pelo preconceito para estigmatizar, que era o capitão do mato no passado, disse o pedetista.

Em um vídeo divulgado em sua página no Facebook, o coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL) se referiu a Ciro como: “figura arcaica, atrasada, que deveria ainda estar no século XIX, e finalmente vai ter que lidar com a justiça. Ciro Gomes não pode mais falar o que quer quando quiser e ofender a todos”, afirmou o vereador. Segundo o jornal O Globo, Holiday, por meio de sua defesa, pede uma indenização de 38 mil reais.

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A partir do século XVII, os capitães-do-mato, homens pobres e livres que perseguiam escravos fugitivos, tornaram-se mais populares no País por conta do crescimento do Quilombo dos Palmares. Além da caça aos escravos, os capitães também eram orientados a destruírem qualquer quilombo que encontrassem.

Mesmo sendo uma posição de pouco prestígio, a atividade era bastante procurada por homens livres, negros e não negros, em busca de prêmios e outros benefícios que garantissem seu sustento e de seus familiares.

O comentário de Ciro sobre Holiday dividiu opiniões entre as pessoas negras. Liberal, defensor da meritocracia e contra medidas afirmativas são alguns pontos que distanciam ideologicamente o vereador do movimento negro. “Não basta estar acorrentado pela direita. Sempre que pode, ele é ponta de lança nos ataques aos que mais sofrem”, diz Eduardo Rocha, militante dos movimentos negro e LGBT e estudante de Direito da USP, sobre Holiday.

Entretanto, ao ser chamado de “capitãozinho-do-mato” por uma pessoa branca, as divergências são colocadas de lado. “O coronel moderno [Ciro Gomes] traz na chibata a solução para manter o negro que precisar em seu devido lugar e, assim, se colocar como o libertador que trará a saída da esquerda”, comenta o ativista.

Para o historiador Jones Manoel, Holiday faz parte de um movimento e apresenta uma postura política que reforçam o racismo. “Ele, para ficar em apenas um exemplo, é contra as cotas raciais: importante, ainda que limitada, política pública de mitigação ao racismo. Nesse sentido, creio que a crítica de Ciro Gomes é correta e acho que o fato de ele ser um pré-candidato presidencial não torna sua crítica inadequada”.

Em 1963, o termo “house slave”, em português “negro da casa”, marcou um dos principais discursos de Malcom X, a Mensagem a Grass Roots, durante os debates pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. No pronunciamento, o ativista estadunidense identificava como “negro da casa” o negro escravizado que ainda era extremamente submisso ao seu dono.

“Essas expressões como ‘capitão-do-mato’ e ‘negro da casa’ são recursos do próprio movimento negro para fazer uma autocrítica aos indivíduos que não tinham um posicionamento anti-racista”, aponta o cofundador do portal Alma Preta Pedro Borges. “Na verdade, tem um monte de capitão-do-mato da política, branco e negro, que trabalha na manutenção do racismo e perpetua a desigualdade. Por isso, a crítica faz mais sentido se for uma cobrança do movimento negro para o Fernando Holiday”, complementa o jornalista.

Segundo Jones Manoel, a ação do Ministério Público não tem propósito. “Essa decisão do MP de São Paulo é uma medida midiática, risível e digna de um judiciário que cada vez mais atua como um ator em decadência e desesperado por fama”.

O ativista aponta outros problemas mais urgentes que são vivenciados pela população negra diariamente. “Estamos falando do estado com uma das polícias que mais mata no Brasil e um dos sistemas penais mais caóticos e desumanos”.

Em relação ao lugar de fala de Ciro Gomes, Pedro Borges contesta: “Não me recordo de ouvir o Ciro Gomes ou outros representantes da esquerda se referir às figuras brancas como senhores de engenho. O capitão-do-mato só faz sentido porque existe e estrutura escravocrata. Então, ao invés de fazer uma crítica ao capitão-do-mato, será que não seria importante fazer uma crítica ao senhor de engenho e a sua representação de modelo econômico?“, questiona.

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