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Yo soy Macabéa

Flor Avariano retrata, em crônicas produzidas ao longo de dez anos, a dura trilha dos refugiados venezuelanos

Yo soy Macabéa
Yo soy Macabéa
Espelhos. Ao conhecer Macabéa, a personagem de A Hora da Estrela, e Carolina Maria de Jesus, no IMS-SP, Flor compreendeu melhor a própria escrita – Imagem: Ronaldo Lages, Correio da Manhã/Arquivo Nacional e Redes sociais
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As sucessivas crises na Venezuela fizeram com que Flor Avariano e seu filho ­Alejandro Pinto passassem oito anos sem se ver. Quase uma década atrás, Alejandro decidira partir para a Colômbia, em busca do sonho de se tornar cantor. Alguns anos depois, seria a vez de Flor deixar a terra natal, mas rumo ao Brasil, onde vivem hoje mais de 500 mil imigrantes venezuelanos.

O reencontro entre Alejandro e Flor, no fim do ano passado, em São Paulo, é um dos relatos a compor o livro Inventando a Água Morna: Crônicas da Ignorância, a ser publicado em julho pela editora Penalux.

Ao mesmo tempo que é um retrato da jornada íntima da autora, o livro é um testemunho mais amplo da saga desse enorme contingente de refugiados que, nos últimos anos, tem deixado o país de Hugo Chávez e Nicolás Maduro para procurar melhor sorte no Brasil.

“O reencontro foi mágico. Saí do ­táxi com meu tio, e minha mãe nos recebeu com meu irmão mais novo, Elias, a quem chamo de ‘Juan’. Nos abraçamos como não fazíamos há oito anos, e depois comemos a comida mais gostosa do planeta, feita por ela”, conta Alejandro, que, desde o ano passado, também adotou Poá, na grande São Paulo, como residência.

A cidade e sua região metropolitana são, ao lado de Manaus, Curitiba, Dourados, Porto Alegre, Brasília e Rio de Janeiro, das que mais recebem os venezuelanos que atravessam a fronteira.

Flor partiu de Guarenas, cidade-dormitório nos arredores de Caracas, em fevereiro de 2018, e viajou até Pacaraima, em Roraima, a bordo de um ônibus clandestino, em condições precárias. De lá, partiu para a capital Boa Vista, onde viveu três meses ao relento – ou, como ela própria diz, en la calle – até receber ajuda humanitária da Operação Acolhida.

Essa operação, executada pelo governo federal, é uma força-tarefa que busca oferecer condições para que esses imigrantes partam para outros municípios brasileiros, em um processo de interiorização e inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Hoje, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, 1.026 municípios já receberam refugiados.

Após a cruzar a fronteira, em 2018, a autora chegou a viver nas ruas. Hoje, é camelô

O destino de Flor, que viajou com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), foi a cidade de São Paulo – mais especificamente, o albergue Vila do Reencontro, no bairro do Pari, na Zona Norte. Depois de oito meses no albergue, ela morou de aluguel por um ano e então se juntou a uma ocupação em Poá, onde vive hoje.

Sua história é muito semelhante à de tantas imigrantes que chegam por aqui. Apesar de todos os percalços, Flor traz no rosto a esperança da melhora de vida e um sorriso que, se de início parece tímido, ganha luz à medida que vai se soltando. Mulher de diversos talentos, ela foi cantora de música popular na ­Venezuela e aqui se divide entre o trabalho como camelô em São Paulo e a escrita.

“No abrigo para imigrantes, a gente tinha de sair cedo e só podia retornar a partir das 17 horas”, conta, em entrevista a CartaCapital. “Nesse período, eu dividia meu tempo entre procurar emprego e vender meias como ambulante. E, nas horas vagas, frequentava muito a Biblioteca de São Paulo (também na Zona Norte da cidade). Eu já escrevia na Venezuela, inspirada pelo que ouvia o ex-presidente Chávez falar, e nos poemas que ele recitava. Quando cheguei ao Brasil, algo me dizia que publicaria meu livro de crônicas.”

Inventando a Água Morna: Crônicas da Ignorância, que reúne textos produzidos na última década, é a concretização desse sonho. Embora o impulso para a escrita tenha sido despertado na Venezuela, foi aqui que ela passou a tomar mais consciência do que era – ou podia ser – a literatura.

“Quando comecei a escrever, não tinha ideia do que era ou não literatura. Eu simplesmente escrevia para deixar um registro do que estava acontecendo na Venezuela”, diz. Foi em 2021, ao visitar as exposições de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector, organizadas pelo Instituto Moreira Salles (IMS), na Avenida Paulista, que ela foi fisgada por duas obras que passariam a ser suas referências não apenas temáticas, mas estéticas.

“As duas são totalmente opostas. Quando vi a mostra de Carolina Maria de Jesus, me senti como se eu fosse ela”, rememora. “Tivemos muitas experiências similares, morando em barracos, sendo mães solteiras, carregando água na cabeça e tendo de sair na rua para lutar. Chorei muito.”

Meses depois, entraria em cartaz Constelação Clarice, que causou em Flor outro tipo de impacto. Mas em nada menor. “No caso de Clarice, me identifico não tanto com sua figura, mas com a protagonista de A Hora da Estrela, Macabéa. Já li três vezes esse livro”, conta.

“Na primeira vez, achei que ela estava falando de mim. Senti que Macabéa era eu mesma, pois não pensava de maneira muito profunda sobre as filosofias da vida, mas tinha muitos desejos”, afirma, emotiva. “De repente, tive vontade de gritar: ‘Yo soy Macabéa’.” •

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

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