Cultura

Woody Allen volta a celebrar Nova York, mas se escora em conceitos antigos

Um Dia de Chuva em Nova York é exatamente o contrabalanço daquele insight de 1979 em Manhattan

No novo filme, Allen recorre a atores muito jovens
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Quarenta anos após filmar Manhattan, um dos filmes que ajudaram a cristalizar uma certa visão de cineasta chauvinista, abusivo em relação às mulheres, Woody Allen apresenta nos cinemas brasileiros um esforço de retratação histórica: sua nova produção Um Dia de Chuva em Nova York é uma espécie de Manhatteen, só que desta vez se volta para o elogio da adolescência e sua intuitiva capacidade de autogestão (em lugar da visão machocêntrica de algum executivo entediado).

É o 49º filme de Woody Allen, que tem 83 anos, e sua exibição tinha sido cancelada pelos estúdios Amazon após filhos adotivos do cineasta terem reafirmado acusações de pedofilia. O diretor entrou com uma ação de 68 milhões de dólares contra os estúdios, retirada após um acordo judicial.

Em Manhattan, o cineasta contava a história de Isaac (interpretado por ele mesmo, Allen) e seu romance com uma garota de 17 anos, Tracy (Mariel Hemingway), cujo destino ele podia manipular a seu bel-prazer. Somente esse plot, nos dias atuais, já seria capaz de atear fogo às salas de cinema, mas na época Allen não foi contestado nem por abordagem inapropriada nem sob acusação de naturalizar o romance de um homem de meia-idade com uma colegial menor de idade.

Um Dia de Chuva em Nova York é exatamente o contrabalanço daquele insight de 1979. É também um dos mais bem realizados filmes de Allen em décadas. Os protagonistas são todos atores muito jovens e a tradicional angústia masculina é menos preponderante, desta vez, do que a feminina. Ashleigh Enright (Elle Fanning) é uma estudante de jornalismo de uma faculdade do interior, Yardley, que consegue agendar uma entrevista com um famoso diretor de cinema de óculos e pose de Nouvelle Vague, Roland Pollard (Liev Schreiber). Ela convida para ir consigo o namorado, o dândi Gatsby Welles (Timothée Chalamet), cujo nome não deixa dúvidas: é uma mistura de fantasias literocinematográficas de Woody Allen, um personagem de vaudeville extemporâneo que sabe usar o WhatsApp e ao mesmo tempo cita Cole Porter como se mascasse chicletes.

Ashleigh e Gatsby são ricos e belos. Ela é filha de um banqueiro de Tucson, Arizona. Os pais de Gatsby são milionários de Manhattan, e ele, como um Woody Allen universitário, vive em fuga das opressões maternas, inebriado com o próprio sucesso em jogos de azar e arriscando-se ao piano em canções jazzísticas, como Everything Happens to Me (Tony Adair-Matt Dennis).

De volta à cidade natal com a nova namorada, Gatsby tenta evitar a mãe (Cherry Jones) e suas festas enfadonhas. Ao deixar a namorada com o cineasta, Gatsby a deixa à mercê de um catálogo inteiro de fantasias de homens de meia-idade: além da falsa angústia existencial do cineasta Pollard (o nome, obviamente, sugere um sarro na história do diretor Roman Polanski, que fugiu dos Estados Unidos após acusação de abuso de uma menor), ela flana entre o inseguro roteirista Ted Davidoff (Jude Law) e o ator clichê de latin lover Fernando Vega (Diego Luna).

A atriz Selena Gomez e o diretor Woody Allen

A saga de Ashleigh (desta vez o diretor tem o cuidado de salientar que ela tem 21 anos) é um rito de passagem de uma garota ambiciosa pelo mundo imaturo dos homens que habitam peles de celebridades. Pela primeira vez, em lugar de encarnar suas neuroses e surtos hipocondríacos num homem, Woody Allen o faz em uma mulher. É uma interpretação magistral de Ellen Fanning. Como um elemento de oposição ao clichê da “blonde ambition”, a morena Shannon (Selena Gomez) entra na rota de Gatsby como garota-que-sabe-o-que-quer desde a mais tenra idade. Ácida e romântica em doses equilibradas, Shannon tem potencial para chacoalhar o precário equilíbrio do casal.

Colocando seus personagens diante de encruzilhadas éticas, sempre com sarcasmo e um humor sem nenhuma autoindulgência, Woody Allen parece esboçar algumas defesas das próprias acusações de que é alvo. A fantasia de Ashleigh pelo ator latino famosão é uma fantasia que o cineasta pressente como natural em um considerável batalhão de universitárias. Entregar-se a ele, contudo, terá de ser uma decisão pessoal (embora essa “decisão” possa ser facilitada pela quantidade de bebida, aditivos consumidos e a manipulação). Em busca de uma vocação, Gatsby termina encontrando aquilo do qual fugia: o segredo sob o qual se escondia a visão de mundo de elite da sua família, num monólogo formidável (que exacerba certo tom melancólico da história) da veterana Cherry Jones.

No fim das contas, a cidade, o cenário, é mais importante que as personagens

A grande personagem do filme é invisível, embora exuberante em todas as suas aparições. Trata-se de Manhattan, a cidade. Woody Allen detém-se não só nos manjados pontos turísticos (os passeios de charrete, o relógio Delacorte no Central Park e as escadarias do Metropolitan), mas também em seus próprios territórios sagrados, como o Bemelman’s Bar do hotel Carlyle, no qual ele toca clarineta há décadas. Allen rende um tributo à capacidade de autodeterminação de Manhattan, seu ritmo particular capaz de dirigir os destinos, aproximar as vidas, determinar sua separação ou então reunir histórias que jamais se tocariam em outro lugar que não nessa babélica metrópole de vontade própria.

Um Dia de Chuva em Nova York

Escrito e dirigido por Woody Allen.

Com Timothée Chalamet, Elle Fanning, Selena Gomez, Jude Law.

Direção de arte: Vittorio Storaro.

Estados Unidos, 2019. Estreia dia 21 de novembro

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