Cultura

Wole Soyinka: compromisso e compaixão

Uma das estrelas da Feira do Livro de Porto Alegre, o escritor nigeriano vencedor do Nobel de Literatura é um espírito indomável

Soyinka (esq.), Nobel de Literatura, nunca deixou de refletir sobre a condição dos negros
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Para chegar de Lagos, Nigéria, até a cidade sagrada de Ilé Ifé, onde tive o privilégio de morar durante um ano, passa-se pela capital do estado de Ogun. Cidade de uma beleza única abrigada entre colinas, Abeokuta nos contempla do alto de suas rochas enormes. Dali emana uma força telúrica que nos exige atenção especial. É o axé de Ogum, que chega ao Brasil incorporado na pena e na imagem de Wole Soyinka. O gigante das letras africanas vem encerrar a Feira do Livro de Porto Alegre, graças à parceria entre a 11ª Bienal do Mercosul, que ocorrerá em 2018, e a Câmara Rio-Grandense do Livro.

Espírito indomável cuja vivacidade não cessa de espantar, Wole Soyinka transita entre a criação literária e o ativismo político como um verdadeiro filho de Ogum.

Instaurador da metalurgia do ferro, Ogum preside as transições da humanidade ao conquistar as novas tecnologias. Guerreiro, ele expande os territórios de seu povo. Mais que força da natureza, como são todos os orixás, Ogum incorpora a superação das barreiras cósmicas, o avanço para novas dimensões de existência. Legítimo filho dele, Soyinka é uma força lírica e lutadora a vencer barreiras, tanto aquelas erguidas pelo colonialismo como outras criadas por opressores contemporâneos. 

Eu o conheci em Dacar, Senegal, em 1976,  quando Soyinka fundava a União de Escritores Africanos, esforço de superar obstáculos políticos e linguísticos entre países confinados em fronteiras traçadas pelo invasor europeu.

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Ali estavam algumas das maiores vozes literárias da África. Mas Soyinka não reunia apenas escritores do continente. Aliado a Cheikh Anta Diop e a Carlos Moore, ele trazia escritores da diáspora. Assim eu pude participar ao lado de meu marido, o brasileiro Abdias Nascimento, um dos convidados.

Das fronteiras que Soyinka se põe a romper, talvez a mais significativa seja a que se ergue entre a África e sua diáspora. Soyinka criticava o que chamava da “consciência salina” de alguns africanos: o hábito de restringir o conceito de identidade africana ao território continental. Além de ressaltar que a noção de “povo negro” para além das identidades étnicas existe em várias línguas africanas, cultivava compaixão e solidariedade com aqueles que foram levados embora e os descendentes deles, hoje discriminados em sociedades herdeiras do escravismo transatlântico. A mesma solidariedade o movia a combater como poucos o regime do apartheid na África do Sul e na Namíbia, bem como os desmandos de Estados opressores como o que o aprisionou na Nigéria. 

Terra de Soyinka, Abeokuta é a cidade de Yemonjá, deusa dos mares e mãe de todas as águas e orixás. Reverenciar as forças da natureza como divindades significa um profundo compromisso com o meio ambiente, fazendo da tradição dos orixás um berço do pensamento ecológico.

Em 2012, Soyinka visitou o Brasil na ocasião do Rio +20. Compareceu à tenda da matriz africana e, em companhia da Mãe Beata de Iemanjá e outras autoridades presentes, reafirmou esse compromisso em ato coletivo.

Naquele momento ele vinha propor ao Brasil uma parceria para realizar o grande encontro de brasileiros negros com seus parentes em Lagos, onde vive uma numerosa comunidade de descendentes de brasileiros retornados à África.

O Festival de Herança Negra de Lagos faria, em 2013, uma homenagem ao Brasil. Soyinka queria uma delegação de peso a representar a cultura afro-brasileira em celebração conjunta do Carnaval “brasileiro” em Lagos.

O Brasil assumiu em tese a parceria, mas deixou de comparecer. A prometida delegação não se materializou por falta de compromisso do Ministério da Cultura com sua própria palavra. A celebração à herança brasileira na Nigéria realizou-se no terreno da antiga penitenciária onde muitos presos políticos foram aprisionados, transformado em um nobre espaço de cultura e lazer: o Freedom Park de Lagos.

A presença brasileira ficou por conta do legado de Abdias Nascimento, cuja obra artística Soyinka conhecia há décadas. Uma exposição das imagens pictóricas de Abdias, uma performance de sua peça “Sortilégio: Mistério Negro” e um simpósio sobre sua produção intelectual compuseram a contribuição brasileira àquele Festival.

Outro festival, o Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, realizado em Lagos em 1977, aproximara Soyinka e Abdias quando o regime brasileiro, que lhe havia cassado o passaporte, tentou impedi-lo de participar no colóquio, fórum intelectual e político do certame.

Soyinka demonstrou sua solidariedade ao pronunciar-se contra a conivência do Estado nigeriano com o veto do governo brasileiro. Seu posicionamento está registrado em prefácio do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, versão em português da tese que Abdias apresentou informalmente àquele colóquio, na qualidade de observador (publicado em 1978 pela Paz e Terra, o livro ganhou neste ano uma nova edição pela Editora Perspectiva).

Logo em seguida, nos encontramos com Soyinka novamente em Cali, Colômbia, no 1o Congresso de Cultura Negra das Américas, quando os negros da América chamada Latina se reuniram de forma inédita para discutir o racismo e o legado africano na região. Soyinka foi detido e pernoitou no aeroporto de Lima, no Peru, mas fez questão de comparecer. Assim, sua presença em Porto Alegre retoma uma antiga caminhada de compromisso com seus irmãos na diáspora.

* Doutora em psicologia pela USP e mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova York (EUA), a autora dirige o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) no Rio de Janeiro

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