Cultura

Walter Salles e o luto inacabado do Brasil

‘Ainda Estou Aqui’ transforma o desaparecimento de Rubens Paiva em uma metáfora para uma história social brutalmente interrompida

Walter Salles e o luto inacabado do Brasil
Walter Salles e o luto inacabado do Brasil
Fernanda Torres e o elenco de 'Ainda Estou Aqui' - Foto: Sony / Pipoca Moderna / Divulgação
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RECIFE – Sem justiça, a dor persiste como em um luto interrompido, como um velório sem corpo – um ciclo que nunca se fecha. Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, transforma o vazio de respostas em um manifesto, uma resistência ao desaparecimento imposto pela ditadura. Candidato do Brasil ao Oscar de 2025, o longa narra a vida da família Paiva – a mãe, Eunice, e os cinco filhos após o desaparecimento de Rubens Paiva, o pai, engenheiro e ex-deputado. Ele foi detido por agentes da ditadura militar na década de 70 sob acusações jamais comprovadas de subversão. E assassinado.

Retratar a saga dos Paiva é um ato de resgate e denúncia sobre o futuro roubado de um país. Apresentando o filme em pré-estreia no festival recifense Janela Internacional de Cinema, Salles destacou a profunda conexão entre a história dessa família e a história de um Brasil que teve seus rumos brutalmente desviados pela violência de um regime que silenciou vozes, destruiu sonhos e proporcionou décadas de apagamento coletivo. Ao reconstituir a perda do que definiu como “um futuro possível”, o diretor expõe o custo incalculável de uma ditadura que privou o país de figuras fundamentais.

Nesse sentido, Ainda Estou Aqui é, além de um retrato de uma geração marcada pela incerteza e pela dor, uma obra que reivindica o direito à memória e à justiça para um Brasil que ainda tenta entender a si mesmo – ninguém foi punido pela morte de Rubens Paiva e o Conselho Nacional dos Direitos Humanos reabriu, neste ano, a investigação sobre seu assassinato.

A ausência do ex-deputado após ser levado para prestar um depoimento sem jamais ter voltado, mais que uma forte perda familiar, é um alerta cruel de uma pátria partida, onde a falta de um corpo para enterrar mantém a dor em estado de vigília. O vazio e o silêncio se perpetuaram como armas de repressão para aquela ditadura. Eunice, vivida intensamente por Fernanda Torres, encarna uma resiliência teimosa, um enfrentamento que insistiu, década após década, em desmascarar a crueldade que o Brasil relutou – e reluta – em confrontar.

Salles constrói, nos primeiros minutos do filme, uma coreografia quase documental, revelando o pulsar de uma rotina que poderia ser a de qualquer família. Ao celebrar a trivialidade do cotidiano – as risadas despreocupadas, o cachorro na praia, os banhos de sol com Coca-Cola para pegar um bronze –, o diretor cria uma camada inicial de humanidade e proximidade que amplia a brutalidade do que está por vir. Quando o vazio se instala, a ausência deixa de ser uma consequência do enredo e se torna um elemento físico e claustrofóbico. A câmera, antes solta e exploratória, agora encurrala. Sai a música e as canções ouvidas em disco pelas personagens. Resta o silêncio e a falta, o vácuo. Primeiro,  vozes, sons, presenças. E, então, o vazio. A ausência se impõe como uma presença, ocupando cada espaço.

A partir da prisão de Rubens Paiva, Salles saem se cena os adornos. Salles se concentra na crueza da perda e no peso do que não pode ser dito, criando uma atmosfera que quase asfixia. A luz vira sombra, desaparecem os risos. E é nesse contexto sombrio que Fernanda Torres brilha. Sua atuação é um exercício de contenção onde cada expressão e olhar carregam a profundidade de um grito preso. O emblemático cartaz do filme já evidencia a firmeza de Fernanda: enquanto o marido e os dois filhos olham para a câmera, sorrindo para a fotografia familiar, ela fixa o olhar além da cena, misturando a doçura do momento em família com o terror contido do que presencia – os tanques da ditadura cruzando as ruas do Rio de Janeiro.

Fernanda consegue comunicar a dor sem recorrer ao óbvio e, apesar do elenco afiadíssimo, destaca-se dos seus pares. Traz a fragilidade e a força de Eunice coexistindo em cada movimento, em cada expressão traçada pelo sofrimento e pela espera. Ao lado da veterana Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice Paiva com Alzheimer no fim da vida, Torres se firma como uma das grandes atrizes do mundo. “Sou sempre salvo por essa família”, destacou Salles, que esteve no Oscar em 1999 com Central do Brasil e Fernanda Montenegro.

O caminho para levar a história dos Paiva às telas foi longo e repleto de cuidados. Foram sete anos de pesquisa intensa, entrevistas e revisões para condensar uma narrativa que, segundo o próprio Salles, poderia facilmente se desdobrar em uma série de dez horas. A versão final do filme tem pouco mais de 120 minutos. Há uma versão estendida, revelou Salles no Janela, que pode um dia vir a público, ainda que, por ora, não haja nenhuma previsão sobre isso. Além de Melhor Filme Internacional, o longa faz campanha para concorrer ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção para Walter Salles, Melhor Edição, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator Coadjuvante para Selton Mello e Melhor Atriz para Fernanda Torres.

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