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Walter Benjamin vai à praia

Muito antes de se tornar um destino das elites, a ilha de Ibiza foi vista, pelo intelectual alemão, como um lugar que resistia à modernidade

Walter Benjamin vai à praia
Walter Benjamin vai à praia
Itinerário conturbado. Benjamin (à direita) teve duas passagens pela ilha do Mediterrâneo. Na segunda delas, o regime nazista já havia se instalado e ele jamais retornaria ao seu país natal – Imagem: Divulgação/Editora 34/Duas Cidades
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Walter Benjamin e ­Ibiza. Vista de hoje, a associação causa certa perplexidade. Afinal de contas, nada mais distante da vida cheia de adversidades do intelectual alemão do que a luxuosidade com a qual, mais tarde, a ilha espanhola seria identificada.

Mas a Ibiza do início dos anos 1930 em nada se parecia com o atual refúgio das elites europeias. Ao contrário. Recanto relativamente isolado, a ilha que se apresentou a Benjamin era um lugar que resistia à modernidade: o novo, incipiente, convivia com o antigo que continuava a se reproduzir. E foi justamente isso que o fascinou em suas duas estadas por lá, como se pode ver em Experiência e Pobreza: Walter Benjamin em Ibiza, ­1932-1933, de Vicente Valero.

Tudo começou um ano antes da ascensão dos nazistas ao poder. Um Benjamin debilitado por mais uma severa crise financeira e psíquica cruzou por acaso, nas ruas geladas de Berlim, com o amigo ­Felix Noeggerath, que lhe sugere Ibiza como destino. Além de tranquila e acolhedora, a ilha se caracterizava pelo baixo custo de vida.

É nesse contexto que o intelectual judeu chega ao Mediterrâneo. A primeira estada começou em abril de 1932 e perdurou até julho do mesmo ano. A segunda, já sob a vigência do regime nazista, ocorreu entre abril e setembro de 1933. Dali em diante, Benjamin jamais retornaria ao país natal.

Entre os anos vividos em Paris, as temporadas na Dinamarca, na casa de Bertolt Brecht, e as viagens a San Remo, na Itália, onde se hospedava na pensão da ex-esposa, Dora, Benjamin perambulou por onde pôde, à procura de uma saída em face da catástrofe que se aproximava.

Experiência e Pobreza: Walter Benjamin em Ibiza, 1932-1933. Vicente Valero. Tradução: Daniel Lühmann. Editora 34, Duas Cidades (272 págs., 76 reais)

Não a encontrou, como testemunha seu trágico fim na mesma Espanha, mas agora em Port Bou, na Catalunha. Foi nesse povoado que, após ter sido barrado pela polícia fronteiriça, em setembro de 1940, tirou a própria vida com a ingestão de morfina.

Em sua primeira viagem à ilha, ­Benjamin deparou-se com uma paisagem ainda intocada pelas transformações associadas à modernidade. “Viajar a Ibiza era, então, como viajar no tempo”, escreve Valero. Benjamin entrevê entre os habitantes locais um tipo de “experiência” cada vez mais rara em meio à “pobreza” do mundo moderno, cujo “progresso” transforma tudo em ruínas.

Sua percepção sofreria mudanças na segunda estada. Além das transformações impulsionadas pelo turismo, que impunha sua forma de “modernidade”, a atmosfera estava muito mais tensa, inclusive pela presença discreta de jovens alemães alinhados ao nazismo. À precariedade material – “o miserável”, era seu apelido entre os vizinhos da ilha – se somava um horizonte cada vez mais sombrio, como se a “rua de mão única” (título de um dos seus livros) o estivesse levando a um beco sem saída.

Em Ibiza, Benjamin vivenciou, portanto, em suas duas visitas, uma virada sem volta. Desde então, a instabilidade que sempre marcara seu itinerário – em especial após a rejeição de sua tese de livre-docência, em 1925 – tornou-se permanente. Sua condição de pária e apátrida ganhou status oficial. É essa condição, aliás, que explica sua obsessão pelos fragmentos, pelos trapos que, na sua miudeza, carregam uma imagem universal do mundo – como se observa em seu projeto sobre as “passagens” de Paris.

Mostrar como, para Benjamin, os meses em Ibiza tiveram uma importância não apenas afetiva, mas intelectual, é o que faz de Experiência e Pobreza um livro imperdível. Ele traz à tona a vitalidade de um pensamento que, talvez por seu caráter inacabado, consegue nos transportar do presente ao passado, e vice-versa, movimento fundamental para se pensar e se imaginar um novo futuro. •


*Fábio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.

RUPTURA COM A ACADEMIA

Rua de Mão Única, publicado originalmente em 1928, marca uma virada em sua trajetória

por Ana Paula Sousa

Olhar. O volume reúne 60 textos breves e foi dedicado a Asja Lacis, por quem o pensador estava apaixonado

A mesma coleção pela qual foi lançado o livro sobre a experiência de Walter ­Benjamin em Ibiza publica Rua de Mão Única (Editora 34, 168 págs., 62 reais), que reúne 60 textos breves do ­intelectual alemão. O volume, traduzido por Rubens ­Rodrigues Torres Filho, traz um texto introdutório da filósofa Jeanne Marie Gagnebin.

Rua de Mão Única foi publicado em 1928, ou seja, quatro anos antes da primeira viagem do pensador à ilha espanhola. O livro antecipa as inquietações que se fariam presentes na vida de Benjamin nos anos seguintes e marca seu distanciamento dos ditames acadêmicos e da carreira universitária.

Lê-se na orelha da edição brasileira que o trabalho foi dedicado a Asja Lacis, militante comunista e diretora teatral por quem Benjamin se apaixonou. O livro traz, inclusive, um texto assinado a quatro mãos por ambos, sobre Nápoles, e um trecho das memórias de Asja.

Do conjunto de textos emergem com especial força a experiência da modernidade – vivenciada nas transformações das cidades e nos novos modos de ser – e o olhar sobre a vida burguesa, composta de um “amálgama de estupidez e covardia”.

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Walter Benjamin vai à praia’

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