Cultura

“Waiting for B.”: Lar, doce fila

Rejeitados, muitas vezes, em casa e nas escolas, jovens fazem do acampamento montado no estádio meses antes do show da Beyoncé um local de acolhimento

Personagens entrevistados no documentário 'Waiting for B', de Paulo César Toledo e Abigail Spindel
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Em fevereiro de 2001 o elenco do Palmeiras se hospedou a poucos quarteirões de casa, em Araraquara, na véspera de uma partida contra a Matonense, na cidade vizinha, pelo Campeonato Paulista.

Eu era na época um adolescente bastante estranho que passava as tardes fazendo caricaturas dos meus ídolos no esporte. Ao saber das presenças ilustres, passei dias, talvez semanas, desenhando os principais atletas do meu time.

No dia em que eles chegaram, montei a guarda na frente do hotel com uma dúzia de torcedores desocupados no meio da tarde até finalmente entregar os papeis, até então o meu primeiro e único contato entre o torcedor e os ídolos que me acostumei a ver pela tevê.

Fiquei tão emocionado ao conversar com alguns deles que, mal viraram as costas para voltar à concentração, eu VOMITEI na roda do ônibus da delegação.

Eu nunca entendi direito o que explica essa relação com um esporte cujo objetivo é acertar uma bola num espaço entre duas traves e um travessão. Para disfarçar, digo, em tom catedrático, que escolher um time de futebol é escolher as referências que nos vão guiar pela vida. É o que nos faz torcer, aos 30, 40 ou 90 anos, com o espírito dos meninos de 11: a capacidade de se encantar com belas histórias. Naquele dia em que conheci meus ídolos eu tinha 17 anos.

Pode chamar de fanatismo, mas nós, torcedores, vamos sempre teorizar sobre o inexplicável. Na vida, nem sempre assistimos às pequenas grandes histórias construídas por grandes personagens na invisibilidade de suas casas, rotinas e trabalhos.

No esporte, podemos observar os grandes gestos de superação e generosidade em tempo real. Quando erguem uma taça, os ídolos não levantam apenas uma conquista. Constroem nossas memórias. É a elas que recorremos quando nossas vidas ordinárias, longe dos holofotes, também nos pedem precisão e coragem para seguir.

Guardada as proporções, é mais ou menos essa a lógica da relação entre fãs e artistas, estes aqui entendidos como fenômenos globais organizados em lógicas de grandes turnês.

Nos sites de entretenimento, lemos o tempo todo histórias de fãs que tatuaram o nome ou o símbolo de determinada banda nas costas e na testa, que viajaram o mundo, que venderam as casas para pagarem uma relíquia que algum dia o ídolo máximo tocou. Mas nada tem capacidade de causar tanta espécie ou chacota quanto acampar na frente de um estádio dias, semanas ou meses antes do show.

De quando em quando alguém noticia a disposição de parte do público em obter espaço privilegiado em alguma apresentação, mesmo que para isso precise abrir mão do conforto de casa por um período considerável. Rimos, atribuímos a disposição à loucura, à falta do que fazer, ao vazio da adolescência (a maioria é adolescente) e voltamos à rotina regular, aquela que acreditamos estar destituída das insanidades e excessos do tipo.

Pois os diretores Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel resolveram levar a sério esse fenômeno durante as filmagens de “Waiting for B.”, documentário que estreou em 20 cidades do país na última quinta-feira 2. O filme conta o esforço de um grupo de fãs da cantora Beyoncé que, sem dinheiro para comprar o ingresso mais caro, passa dois meses acampando na porta do Morumbi, onde será o show, para garantir os lugares próximos da estrela internacional.

O resultado é surpreendente.

Porque, mais do que uma relação fã e ídolo (como previa ao lembrar do garoto de 17 anos que desenhava os jogadores favoritos), por trás do fenômeno há um esforço de afirmação da identidade – e talvez por isso, ao ver a alegria deles diante da aventura e a oportunidade de ver de perto a cantora, deixamos a chacota de lado e ficamos comovidos. Os jovens não são “apenas” fãs de uma cantora americana. Nem são desocupados com tempo de sobra para acampar durante dois meses à espera de uma atração.

Pelo contrário. Eles ralam, batalham, trabalham, perdem horas em transportes coletivos precários distantes de casa, geralmente habitações apertadas na periferia. Os meninos, ao menos todos os que foram entrevistados, são jovens e gays. A maioria negra ou morena.

Sem narração, a câmera percorre as barracas e testemunha as danças e passatempos dos jovens na calçada, os preparativos e troca de guarda entre os grupos de casa ao trabalho, do trabalho ao acampamento.

Nas conversas, testemunhamos um certo engajamento em torno da estrela americana, para eles um exemplo de força, talento e superação em um universo branco e masculinizado, ou pautado pela estética masculina. (Tentei pensar qual artista mulher levaria um homem assistir a um show ou evento esportivo num estádio e não me veio nada à cabeça; talvez porque os amores, e referências, de homens heterossexuais sejam todos, ou quase todos, homens, tanto no esporte quanto nas artes).

Mas o ponto principal é outro. Aqueles jovens estão, sim, em busca de diversão e arte, mas também, como adiantamos acima, de afirmação. Não é fácil ser jovem, mas é ainda menos fácil ser jovem e pobre; menos ainda, jovem, pobre e gay; menos menos ainda jovem, pobre, gay e negro.

“Fora daqui eu sofro preconceito por ser gay. Aqui eu sofro preconceito por ser negro”, diz um dos entrevistados a certa altura.

Não é fácil afirmar a identidade em um país, e não falamos só do Brasil (daí a experiência dos fenômenos globais), majoritariamente racista, segregacionista e homofóbico. Mas é um pouco menos difícil quando essa afirmação é desenvolvida em grupo e com uma pequena ajuda dos amigos, os velhos e os novos que se conheceram na fila do show com uma paixão em comum.

O fenômeno pop no qual se espelham é um catalisador desse encontro possível, mas também de uma fuga. Só consegue rir e fazer chacota de quem passa dias, semanas, meses buscando abrigo em barracas às portas de um estádio quem não sabe o que é ser rejeitado dentro de casa, da família, das escolas – nos espaços que deveriam servir de abrigo, compreensão e acolhimento para ser o que se é sem a rusga da hostilidade e da condenação, enfim.

Naquele acampamento improvisado, aqueles meninos estão em casa. O tempo em que passaram juntos na fila é uma espécie de viagem estendida de formatura – sem o peso de, ali, ser “só” minoria.

De dentro das barracas, começamos a compreender a lógica que move aqueles jovens; aprendemos também a ressignificar os fenômenos do lado de fora.

Numa das cenas, o grupo fica ilhado no acampamento mambembe num dia de jogo do São Paulo, o dono do estádio. Um torcedor se aproxima e começa a fazer perguntas, mal disfarçando o estranhamento, ao ver tamanha demonstração de amor a uma atração artística. Corta a cena e vemos torcedores, não menos fanáticos, gritando palavras de ordem e juras de amor à entidade esportiva.

O “fanatismo”, por aqui, ganha outro nome quando se trata de torcedores homens declarando amor a atletas homens. Sobre isso temos investigação, cobertura e estudos de sobra. Faltava quem estendesse o olhar, e os braços, a um pedaço significativo do país fadado ao esquecimento, à piada ou ao estranhamento. O documentário serve como ponte até eles – e a nós.

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