Cultura
Volver à latinidade
Indiana Nomma, nascida em Honduras, filha de pais brasileiros, ganha um inédito destaque na carreira ao regravar o repertório de Mercedes Sosa


Em 1980, Mercedes Sosa (1935-2009) apresentou-se na Praça da Revolução Sandinista, em Manágua, capital da Nicarágua. A performance da cantora argentina fazia parte da Campanha Nacional de Alfabetização do governo que havia acabado de suceder ao ditador Anastasio Somoza – deposto no ano anterior. La Negra, como era conhecida a artista, cantou para uma multidão na qual estava Indiana Nomma, nascida em Honduras, filha de pai e mãe brasileiros. Ela tinha 4 anos e assistiu ao show sobre os ombros do pai, o sociólogo baiano Clodomir Santos de Morais.
Apesar da pouca idade, Indiana foi impactada por hinos libertários como de Solo le Pido a Diós – no qual se ouvem os versos Só peço a Deus/ Que a guerra não me seja indiferente/ É um monstro grande e que pisa forte. “Nunca esqueci aquela mulher ameríndia de vestido vermelho e voz poderosa, com todas aquelas pessoas juntas tentando acompanhá-la, emocionadas”, diz Indiana, em entrevista por telefone a CartaCapital.
Passadas quatro décadas desse show, Indiana, versada em jazz, blues e até no sertanejo (como backing vocal de alguns artistas), decidiu homenagear em disco aquela que a inspirou a entrar no universo da música. Mercedes Sosa: A Voz dos Sem Voz, lançado sem muito alarde no ano passado, traz dez canções do repertório da artista argentina. No álbum, Indiana é acompanhada pelo marcante violão de André Pinto Siqueira.
Desde então, o boca a boca em torno do disco tem sido grande e, com isso, também os shows baseados nele têm sido vários, e quase sempre cheios, como os realizados no último fim de semana no Sesc Pompeia, em São Paulo. Esse profícuo reencontro entre a cantora e Mercedes Sosa não deixa de ser um reencontro com sua própria história de vida. Seu pai, Clodomir, foi autor do Dicionário da Reforma Agrária e era amigo de Paulo Freire. Sua mãe, Célia Lima, era educadora, militante de esquerda e, em 1963, denunciou a tortura em uma CPI.
Foi justamente o posicionamento político que obrigou a família a deixar o País nos tempos da ditadura. Eles viveram em Honduras, México, Portugal, Nicarágua e até na Alemanha Oriental. “Passei, ao todo, por 30 países”, diz Indiana. “Na infância, a brincadeira era decorar as capitais dos países no mapa e ir a museus e exposições. Minha mãe sempre dizia que era por meio da cultura que se conhecia a história de um país. Aprendi várias línguas, músicas, estilos e, por isso, me adapto facilmente a mudanças.”
O conhecimento musical foi incentivado, em grande parte, pelos pais e irmãos. Seu pai gostava de música clássica, jazz, Luiz Gonzaga e ABBA. A mãe ouvia muito Mercedes Sosa, Violeta Parra, Pablo Milanés e Silvio Rodriguez. Na vitrola dos irmãos, tocava principalmente disc music e pop. “Percebi, ao longo da carreira, que essa mesma adaptabilidade e abertura mental para o novo faz com que eu tenha dificuldade em criar raízes e encontrar minha própria identidade cultural”, reflete.
“Sinto uma conexão imensa com a terra e os povos ameríndios quando canto as canções que La Negra entoava”, diz ela
Indiana voltou para o Brasil de forma definitiva em 1987 e, no início da carreira, passeou por diversos estilos e criou shows nos quais demonstrou sua versatilidade. No início dos anos 2000, apresentou, em Cabaret, um repertório jazzístico que ia de Billie Holiday a Ray Charles, e, em Do Que Eu Gosto, misturava MPB, rock e pop, mas destoando das preferidas dos barzinhos. O próprio repertório de Mercedes Sosa se fazia então presente em alguns de seus shows. Mas faltava algo.
O cantor e compositor Renato Teixeira confessou certa vez que só entendeu sua missão musical ao escutar Paulinho da Viola. Indiana passou por isso, justamente, ao resgatar Mercedes Sosa e o jazz. “Sinto uma conexão imensa com a terra e os povos ameríndios quando canto as canções que La Negra entoava”, diz. “É como se, de repente, eu me integrasse com a ancestralidade que carrego e com tudo que sou. Já o jazz é como se fosse um parque de diversões imenso, onde posso brincar com todos os temas, melodias, harmonias, improvisos e cantá-los e recantá-los como bem entender.”
Mercedes Sosa: A Voz dos Sem Voz é, a um só tempo, delicado e potente, que nos recoloca em contato com a música produzida em outros países latinos por autores como Violeta Parra, Victor Jarra, Leon Gieco e Maria Elena Walsh.
E a importância de Mercedes Sosa vai muito além do repertório. Ela é um dos grandes nomes do movimento Nueva Canción, que valorizou o protesto e a consciência social. “Nas canções do movimento, enxergamos uma busca constante pela tão sonhada unidade latino-americana”, diz a pesquisadora Bruna Ramos da Fonte. “Enquanto durou, notamos que houve um intenso intercâmbio entre artistas das mais diversas partes do território. Mas esse intercâmbio, infelizmente, nem prosseguiu nem resultou na utópica união entre países que partilham de uma mesma história.”
Indiana, intérprete singular, dona de uma voz ampla, dá uma nova luz a esse repertório e até mesmo a canções que foram tocadas à exaustão, como Gracias a la Vida e Volver a los 17. Tal entrega lhe rendeu admiradores, inclusive, da Argentina.
“O neto da Mercedes Sosa, Agustin Matus, me procurou no Rio de Janeiro. Ele tinha ouvido falar do meu trabalho e gostou muito do respeito com que eu tratava a obra de sua avó”, conta a cantora. “Nos tornamos amigos e, tempos depois, a Fundación Mercedes Sosa, dirigida à época pelo filho de Mercedes, Fabian, e da qual os netos Agustin e Araceli faziam parte, me cedeu parte do cenário utilizado durante o show.” •
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Volver à latinidade’
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