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Vividamente excêntrica

Com aparições tanto em franquias de Hollywood quanto em filmes autorais, Tilda Swinton tornou-se um rosto onipresente na indústria cinematográfica

Vividamente excêntrica
Vividamente excêntrica
Identidade mutável. Na última edição do Festival de Veneza, encerrada na semana passada, a atriz desfilou sua altura imponente e suas feições pálidas e lapidadas ao apresentar A Filha Eterna - Imagem: Andrea Solaro/AFP
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“Ah, nããão”, disse Tilda Swinton, em tom baixo e doloroso, com os olhos voltados para o chão, ao receber o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2008. Não é assim que as estrelas costumam começar um discurso na noite mais brilhante de Hollywood. Mas o dela, obviamente, recuperou-se do início reprimido com piadas agradáveis sobre o Batman de ­George Clooney e a bunda de seu agente, e terminou com um empolgado “Obrigada, obrigada, obrigada!”

Por um breve segundo, entretanto, a atriz britânica de 47 anos pareceu quase se desculpar, como se tivesse invadido uma festa e não esperasse ser flagrada. Ela estava em Hollywood, e não podia mais sumir na multidão. Tilda é hoje um rosto onipresente.

Recentemente, foi vista em ­Memória, de Apichatpong Weerasethakul, A Crônica Francesa, de Wes Anderson – ambos lançados no Brasil – e The Souvenir Part II, de Joanna Hogg. Neste momento, está em cartaz, nos cinemas, na excêntrica fantasia romântica Era Uma Vez Um ­Gênio, de George Miller. Na semana passada, esteve na exibição de A Filha Eterna, também de Joanna Hogg, no Festival de Veneza, e ainda este ano, em breve, será vista em ­Asteroid City, de Anderson, e como dubladora da Fada Azul no Pinóquio de ­Guillermo del Toro.

No início da carreira, poucos teriam apostado que Tilda ganharia um Oscar – e não por falta de admiração. Alta e fisicamente incomum, ela tinha a reputação de uma das atrizes mais talentosas e ousadas de sua geração, mas costumava embarcar apenas em projetos à margem da corrente dominante.

Suas escolhas iniciais não foram as de alguém que queria ser a próxima Meryl Streep

Em 1991, ganhou o prêmio de melhor atriz em Veneza pela interpretação radicalmente sexual de Isabela da França, em Edward II, dirigido pelo britânico Derek Jarman (1942-1994). Um ano depois, fez a personagem-título, que muda de gênero, no filme Orlando, de Sally Potter, baseado em Virginia Woolf.

Não era a primeira vez que Tilda jogava com o gênero. Em 1987, representou, no teatro, uma viúva que, durante a Segunda Guerra Mundial, assume a identidade do marido. Sua performance causou impacto suficiente para ser filmada para a série ScreenPlay, da BBC.

Tilda não estudou interpretação. Enquanto estudava Ciência Política, em Cambridge, se interessou por teatro estudantil e, um ano depois de se formar, ingressou na Royal Shakespeare Company. Com Jarman, com quem fez nove filmes em oito anos, encontrou tanto seu ofício quanto sua identidade de outsider.

Seu primeiro papel no cinema, em 1986, foi o da amante condenada em ­Caravaggio, de Jarman. A intensa sensualidade de sua aparição causou grande impacto. O cineasta e crítico Mark Cousins, que se tornaria seu amigo e colaborador, disse ao Observer que, desde o início, “ela sabia que a atuação cinematográfica é um trabalho visual, mais que literário.”

Quando entrou para o mercado norte-americano, em 1996, não foi por intermédio de Hollywood ou do cinema de prestígio que esperava prêmios, mas no audacioso drama erótico de Susan Streitfeld, baseado em psicanálise, Desejos Femininos. Não eram escolhas de alguém que quisesse ser a próxima Meryl Streep.

Nos primeiros anos da carreira, os diretores de elenco relutaram em vê-la como uma mulher comum. As descrições de seu trabalho tendem a enfatizar sua aparência extraordinária, com sua altura imponente, feições pálidas e lapidadas e um senso de moda incomum e espacial. Se é que Tilda lê resenhas, está, provavelmente, farta de palavras como “sobrenatural”, “etérea” ou mesmo “escultural”.

Galeria. Ela pode ser vista nos cinemas em Era Uma Vez Um Gênio. Em Veneza, apresentou A Filha Eterna. No mesmo festival, ganhou, em 1991, o prêmio de melhor atriz pelo filme Edward II – Imagem: Paris Filmes, FineLines Features e A24/BBC Film

O crítico Vincent Canby, do New York Times, foi um dos poucos a não jogar sobre ela um olhar exótico. Em sua resenha de Orlando, além de prever para ela “uma grande carreira internacional”, chamou atenção para a sua “doçura, gravidade e inteligência”.

Para Cousins, é “porque ela ultrapassa a maneira convencional de fazer as coisas” que se criou o suposto enigma ao redor de Tilda. “Ela é como o Papa-Léguas nos desenhos de Chuck Jones: à frente, superando Wile E. Coyote, o óbvio ou mediano”, diz. “Na vida real, ela é prática – arrumou direitinho minha lava-louça –, mas, mesmo conversando durante o café da manhã, seu cérebro está acelerado.”

Mas o inevitável aconteceu: com o tempo, uma presença fascinante será notada pela indústria. Na virada do século, depois de uma década e meia de audiências marginais, ela apareceu como uma líder de culto carismático em

A Praia (2000), de Danny Boyle, adaptação confusa do best seller GenX, que parecia mais estranha e perigosa sempre que ela aparecia em cena, comandando seus subordinados com segurança sacerdotal e coagindo o personagem de ­Leonardo DiCaprio a fazer sexo com ela.

Apesar de todas as estranhezas, sua performance foi um sucesso e, de repente, Tilda era requisitada por Hollywood como coadjuvante assustadora: a fria funcionária tecnodistópica em Vanilla Sky (2001), ao lado de Tom Cruise, a ríspida e desalmada executiva de estúdio em Adaptação, de Spike Jonze, ou o vingativo Arcanjo Gabriel no extravagante Constantine (2005), de Keanu Reeves.

Também em 2005, foi a Feiticeira Branca na franquia As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, que deve ter se tornado uma figura constante nos pesadelos das crianças, e também assustadora advogada venal no thriller Michael Clayton (2007), de George Clooney, que lhe rendeu o Oscar antes improvável.

Graças à fama, ela tornou-se também um chamariz para projetos menores e experimentais

A ascensão à lista A de Hollywood não afetou, porém, a curiosidade de atriz. Para cada filme da franquia As Crônicas de Nárnia, produto da Marvel ou colaboração com grandes nomes, como David ­Fincher ou os irmãos Coen, há um risco imprevisível. Basta pensarmos no melodrama em italiano Um Sonho de Amor (2010), nos filmes reflexivamente autobiográficos ­Souvenir, de sua colega de escola ­Joanna Hogg, ou no experimental Memória.

Graças à fama adquirida nos filmes de grande orçamento, Tilda torna-se um chamariz para projetos menores, como Precisamos Falar sobre Kevin (2011), de Lynne Ramsay, no qual ela vive o pior pesadelo de todos os pais: ser uma mãe que não encontra uma maneira de se relacionar com o filho.

Sua identidade na tela permanece mutável, mas vividamente excêntrica – o suficiente para que sua própria vida pessoal não convencional nunca domine as conversas. Mesmo sugestões de que, a certa altura, ela compartilhou uma casa e um ménage à trois com seu ex-parceiro, o dramaturgo John Byrne, e seu atual, o artista Sandro Kopp, não se tornou uma fixação dos tabloides.

Pergunto a Cousins se ele acredita no conceito de ator como autor, e se Tilda se encaixaria nisso. Ele não tem certeza. “Você poderia dizer que todos os filmes de Marlon Brando são filmes de Brando, por causa de sua presença e atmosfera, mas acho que Tilda é diferente”, diz. “É claro que as pessoas constroem filmes em torno dela por causa da escala de seu talento, mas ela também gosta de desaparecer em um filme, ou ficar em branco como Garbo fica em branco no final de Rainha Christina.

Com Tilda, muitas vezes você não consegue grandes crescendos de atuação: você tem uma dissolução, um vazio.”

No caso dela, a mudança de forma tornou-se uma assinatura. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vividamente excêntrica “

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