Cultura
Vinte mil léguas amazônicas
Sebastião Salgado expõe centenas de imagens resultantes de 48 aventurosas expedições à floresta


Quando convidado a detalhar a preparação para as expedições que fizera pela floresta amazônica, Sebastião Salgado ganha uma expressão de menino. Tanto quanto a fotografia e a natureza, a aventura o apaixona. “Ninguém imagina o que é fazer essas viagens. Pouco me perguntam como é na prática”, diz, antes de desfiar a impressionante organização que antecedeu cada uma das 48 viagens que resultaram nas fotografias exibidas em Amazônia.
A exposição foi aberta na terça-feira 14 no Sesc Pompeia, em São Paulo, onde fica em cartaz até junho. Depois, seguirá para o Museu do Amanhã, no Rio, e para Belém. Antes, estivera no Museu da Música, em Paris, e no MAXXI Museu, em Roma. Essas mesmas imagens compõem um volume editado pela Taschen, em 2021.
As imagens – 200 delas impressas em tamanhos que variam de um a dois metros e 200 projetadas em telas – são fruto de sete anos de um trabalho que, desvendado em seus detalhes, soa como uma narrativa de Júlio Verne. Sebastião Salgado, nascido há 78 anos em Minas Gerais, levou sua câmera para o meio da mata, para o meio dos rios, para o alto do Pico da Neblina, para dentro de monomotores e para estúdios montados em aldeias.
“A preparação?”, repete, com um sorriso sutil, ao ouvir a primeira pergunta da entrevista concedida dias antes da abertura da exposição. “Para começar, tenho que levar minha própria alimentação, porque a Funai não permite que a gente coma a comida dos índios”, começa. “Deixamos para comprar os mantimentos sempre na última aldeia. Levamos sal, pimenta-do-reino, carne-seca, linguiça defumada… É uma lista exaustiva. Antibióticos, tenho de levar três classes deles, para cobrir todo tipo de infecção. Tem antibiótico para os olhos, para os dentes, tem anti-inflamatório, tem esparadrapo. Na floresta, qualquer cortezinho pode infeccionar. Não temos imunidade para as bactérias da floresta. E tem muita bactéria, porque tem lugares em que a vegetação apodrece.”
Tão vitais quanto os antibióticos são os dois painéis solares que, torrando ao sol durante o dia, garantem que todos os aparelhos possam ser recarregados à noite. Há desde as baterias para a câmera até o aparelho por meio do qual o fotógrafo, via satélite, liga diariamente para a mulher. Além disso, havia, obviamente, o kit básico: lona, rede, lanterna e mosquiteiro.
Amazônia revela 12 comunidades indígenas – Imagem: Sebastião Salgado/Amazonas Imagens
As equipes que participaram das expedições que resultaram nessa Amazônia de certa forma inédita para os olhos eram compostas, em geral, de umas 18 pessoas. Havia, entre elas, capitães-do-mato, canoeiros, antropólogos e tradutores específicos para cada uma das 12 comunidades indígenas. Em seu relato – aventureiro no conteúdo, mas discreto e suave na forma – ,
Salgado dá alguma ênfase às travessias aquáticas. As viagens de dois ou três dias por igarapés tinham de ser feitas por canoeiros habilidosos o bastante para contornar o peso exagerado da embarcação. “A gente carrega uns 2 mil, 3 mil quilos. E leva uma motosserra para cortar troncos que aparecem no meio do rio”, diz.
Salgado também conta ter mais medo de umas formigas grandes, das quais esquece o nome, do que de cobra e de onça. “A cobra é grande, a gente vê. Se a gente levanta à noite, liga a lanterna e verifica todo o chão, formiga você não vê”, descreve. “E vespa então?”. O making-of da aventura será, inclusive, tema de uma outra exposição, a ser inaugurada em março no Itaú Cultural, com fotos feitas por Lélia Wanick Salgado, com quem o fotógrafo é casado há 55 anos, e pelo jornalista Leão Serva.
Fotógrafo-celebridade, Salgado, que vive em Paris, conhece mais de 130 países, fez centenas de exposições, lançou dezenas de livros e foi até o protagonista real de um documentário indicado ao Oscar e premiado em Cannes – O Sal da Terra, dirigido por seu filho Juliano Salgado e por Win Wenders.
Mas voltar ao Brasil, diz, com evidente sinceridade, é sempre um voltar para casa, um retornar ao começo de tudo, à roça onde crescera, no interior mineiro. “Quero mostrar para nós mesmos o que são esses índios, o que é a Amazônia. Tudo isso é nosso e precisa ser protegido”, afirma, com um breve rasgo de emoção. “Hoje, temos um predador (no comando do País), e eu acho que isso, de alguma forma, contribuiu para um despertar da consciência.”
Idealizada e concebida por Lélia, Amazônia se pretende um mergulho sensorial na floresta. O ambiente é composto pela trilha sonora criada pelo músico francês Jean-Michel Jarre a partir de sons da floresta e conta com testemunhos de lideranças indígenas que deixam claro o significado político da mostra. A música se faz presente ainda por meio do poema sinfônico Erosão – Origem do Rio Amazonas, de Villa-Lobos, que acompanha a projeção das fotografias em telas.
Prestes a encerrar a entrevista para voltar a medir a intensidade da luz durante a montagem, Salgado foi questionado sobre o que desejava mostrar quando resolveu fotografar a Amazônia. Ele faz então uma pequena pausa e ensina: “A sua questão, a gente não se põe. Nenhum fotógrafo quer mostrar, ele quer ir ver. Ele fotografa o que tocou o coração dele. Na Amazônia, houve momentos em que eu não pude fotografar porque estava com os olhos cheios de lágrimas”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vinte mil léguas amazônicas”
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