Cultura
Vidas negras importam
Uma mostra realizada pelo IMS revela o diretor norte-americano Billy Woodberry, ignorado pelos cinéfilos


Muitos cinéfilos, incluindo os mais bem informados entre eles, farão cara de paisagem se alguém perguntar se conhecem os filmes de Billy Woodberry.
O diretor norte-americano é um dos líderes do L.A. Rebellion, movimento formado por estudantes negros e não brancos que estudavam cinema na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos anos 1970. Sua obra curta e intensa segue, porém, ignorada pelo cânone, que gera listas e listas de melhores filmes, repetindo visões uniformes enquanto mantém outros modos de ver na penumbra.
Na semana passada, Woodberry, que tem 73 anos e nasceu em Dallas, esteve no Brasil para participar da abertura da mostra que o Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista dedica a ele. A mostra, em cartaz até 30 de junho, permite descobrir um cineasta cuja atenção às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver.
A mostra reúne os dois longas e três curtas-metragens dirigidos por Woodberry ao longo de sua carreira e expande a compreensão de suas influências e interlocuções com dois outros blocos na programação.
Uma seleção reúne quatro títulos realizados por companheiros, como Haile Gerima e Charles Burnett, em que ele participa como narrador ou ator. A outra é composta por sete curtas de épocas distintas e origens diversas, filmes com que o diretor teve contato durante seus anos de formação e alimentaram nele o desejo de começar a fazer cinema.
O Carroceiro, realizado em 1963 por Ousmane Sembene, pioneiro do cinema africano, e Couro de Gato, um registro lírico do cotidiano de meninos de rua feito por Joaquim Pedro de Andrade para o filme coletivo Cinco Vezes Favela (1962) são alguns dos títulos escolhidos que deixaram marcas nítidas no cinema de realizador.
O curta A Bolsa (1980), de Woodberry, que reúne três instantâneos no cotidiano de um garoto negro, deixa clara tanto a inspiração colhida no cinema neorrealista italiano quanto no título de Joaquim Pedro. A perambulação de um grupo de meninos, a tentativa de roubar uma senhora e um diálogo pleno de aprendizados compõem uma ficção na qual Woodberry nunca perde de vista o horizonte documental. A fotografia em um preto e branco áspero acentua os contrastes, revelando um diretor em busca de formas que dizem mais que a temática.
A atenção do cineasta às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver
Este olhar mais preocupado com os fios do que com a trama alcança um resultado valioso no longa-metragem Abençoe Seus Pequeninos Corações, de 1983. Esta ficção intimista em torno do cotidiano de uma família negra é narrada a partir da perspectiva do pai. Charlie é uma versão crescida do pequeno protagonista de A Bolsa, refém de um mundo que não oferece escolhas.
O drama social se desdobra em pequenos dramas familiares, que revelam a conversão dos afetos em intransigências, a condenação a papéis e funções sendo reproduzida entre o homem e a mulher, entre pais e filhos.
A fase mais recente da filmografia de Woodberry reafirma a singularidade de sua abordagem da vida dos negros. O longa-metragem E Quando Eu Morrer, Não Ficarei Morto (2015) esboça um procedimento narrativo que se torna mais elaborado nos dois curtas que se sucedem a ele.
O retrato do poeta beatnik Bob Kaufman, um perseguido político que adotou o silêncio como forma de protesto, desafia as convenções do documentário biográfico. As faces do personagem são reveladas menos por meio das entrevistas que do emaranhado musical e sonoro que Woodberry estende sob as imagens.
O recurso de pontilhismo sonoro produz resultados ainda mais espetaculares em Marseille Après la Guerre (2016), sobre o trabalho de estivadores do porto francês, e em Uma História da África (2019), construído a partir de um acervo de imagens da colonização portuguesa em Angola.
Nestes, as fotografias desvelam o lugar dos corpos nas relações de exploração. Em vez de adotar a forma supostamente neutra do relato ilustrativo narrado por voz e imagens “objetivas”, Woodbury injeta múltiplas camadas de sensorialidades no som, engajando subjetivamente o espectador, levando-o a sentir no corpo, em vez de apenas ver. •
Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.
Muitos cinéfilos, incluindo os mais bem informados entre eles, farão cara de paisagem se alguém perguntar se conhecem os filmes de Billy Woodberry.
O diretor norte-americano é um dos líderes do L.A. Rebellion, movimento formado por estudantes negros e não brancos que estudavam cinema na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos anos 1970. Sua obra curta e intensa segue, porém, ignorada pelo cânone, que gera listas e listas de melhores filmes, repetindo visões uniformes enquanto mantém outros modos de ver na penumbra.
Na semana passada, Woodberry, que tem 73 anos e nasceu em Dallas, esteve no Brasil para participar da abertura da mostra que o Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista dedica a ele. A mostra, em cartaz até 30 de junho, permite descobrir um cineasta cuja atenção às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver.
A mostra reúne os dois longas e três curtas-metragens dirigidos por Woodberry ao longo de sua carreira e expande a compreensão de suas influências e interlocuções com dois outros blocos na programação.
Uma seleção reúne quatro títulos realizados por companheiros, como Haile Gerima e Charles Burnett, em que ele participa como narrador ou ator. A outra é composta por sete curtas de épocas distintas e origens diversas, filmes com que o diretor teve contato durante seus anos de formação e alimentaram nele o desejo de começar a fazer cinema.
O Carroceiro, realizado em 1963 por Ousmane Sembene, pioneiro do cinema africano, e Couro de Gato, um registro lírico do cotidiano de meninos de rua feito por Joaquim Pedro de Andrade para o filme coletivo Cinco Vezes Favela (1962) são alguns dos títulos escolhidos que deixaram marcas nítidas no cinema de realizador.
O curta A Bolsa (1980), de Woodberry, que reúne três instantâneos no cotidiano de um garoto negro, deixa clara tanto a inspiração colhida no cinema neorrealista italiano quanto no título de Joaquim Pedro. A perambulação de um grupo de meninos, a tentativa de roubar uma senhora e um diálogo pleno de aprendizados compõem uma ficção na qual Woodberry nunca perde de vista o horizonte documental. A fotografia em um preto e branco áspero acentua os contrastes, revelando um diretor em busca de formas que dizem mais que a temática.
A atenção do cineasta às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver
Este olhar mais preocupado com os fios do que com a trama alcança um resultado valioso no longa-metragem Abençoe Seus Pequeninos Corações, de 1983. Esta ficção intimista em torno do cotidiano de uma família negra é narrada a partir da perspectiva do pai. Charlie é uma versão crescida do pequeno protagonista de A Bolsa, refém de um mundo que não oferece escolhas.
O drama social se desdobra em pequenos dramas familiares, que revelam a conversão dos afetos em intransigências, a condenação a papéis e funções sendo reproduzida entre o homem e a mulher, entre pais e filhos.
A fase mais recente da filmografia de Woodberry reafirma a singularidade de sua abordagem da vida dos negros. O longa-metragem E Quando Eu Morrer, Não Ficarei Morto (2015) esboça um procedimento narrativo que se torna mais elaborado nos dois curtas que se sucedem a ele.
O retrato do poeta beatnik Bob Kaufman, um perseguido político que adotou o silêncio como forma de protesto, desafia as convenções do documentário biográfico. As faces do personagem são reveladas menos por meio das entrevistas que do emaranhado musical e sonoro que Woodberry estende sob as imagens.
O recurso de pontilhismo sonoro produz resultados ainda mais espetaculares em Marseille Après la Guerre (2016), sobre o trabalho de estivadores do porto francês, e em Uma História da África (2019), construído a partir de um acervo de imagens da colonização portuguesa em Angola.
Nestes, as fotografias desvelam o lugar dos corpos nas relações de exploração. Em vez de adotar a forma supostamente neutra do relato ilustrativo narrado por voz e imagens “objetivas”, Woodbury injeta múltiplas camadas de sensorialidades no som, engajando subjetivamente o espectador, levando-o a sentir no corpo, em vez de apenas ver. •
Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.
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