Vergonha das origens

Existe, em quase todas as regiões do país, uma verdadeira fúria contra a nudez da terra, uma fúria por cobri-la, escondê-la, como se uma coisa imoral

As pessoas parecem possuídas pelo espírito do cimento

Apoie Siga-nos no

Há bem pouco tempo começaram as chuvas e tivemos a oportunidade de assistir novamente àqueles verdadeiros caudais pelas sarjetas da cidade. As bocas-de-lobo não têm garganta suficiente para engolir o volume de água que desce das ladeiras. Primeiro, porque há muita gente jogando lixo em sua volta, e o lixo acaba tragado pelas bocas-de-lobo, que não fazem seleção daquilo que engolem. Mas não é só: cada vez mais, e todo mundo sabe disso, existe menos terra descoberta que absorva a água da chuva. Cimento e chuva, eis a solução para se obterem belas piscinas em nossas ruas.

As pessoas parecem possuídas pelo espírito do cimento. Existe, em quase todas as regiões do país, uma verdadeira fúria contra a nudez da terra, uma fúria por cobri-la, escondê-la, como se uma coisa imoral. Porque a nudez, segundo alguns especialistas no assunto, é imoral. Quando você sai do supermercado, a uma temperatura entre vinte e cinco e trinta graus, e entra no carro, cujo interior pode atingir cinquenta graus, o choque térmico pode ser bem perigoso. Nessa hora, você não sente saudade de uma sombra, de uma árvore, de qualquer coisa que amenize a agressividade do sol?

Tentando entender as razões das pessoas, fui consultar meu compadre Adamastor (batizei-lhe o filho mais novo recentemente), pois ele é que entende de psicologia social, formado como foi no Cabo das Tormentas.

O ser humano, perguntou-me ele, não simboliza tudo? Todo nosso comportamento não tem uma forte carga simbólica? Como eu concordasse, nem tinha outro jeito, ele continuou. Muito professoral para meu gosto, mas com a segurança de quem conhece profundamente o assunto.

O cimento é urbano, ele disse, marca de civilização, de progresso. O cimento não suja, pode ser lavado. A terra é rural, lembra tudo que é primitivo. Na terra é que as crianças se sujam durante as brincadeiras. A terra vira lodo quando chove, emporcalha os pés da gente. Quando as pessoas cobrem tudo de cimento, estão escondendo o avô, que sofria com os bichos-de-pé; a avó, com as narinas pretas da fumaça de querosene. Estão negando suas origens.

O que fica difícil de entender é que essa ânsia de assepsia e o desejo de esconder os matutos de que nos originamos, não tenham correspondência no trato com o lixo, com nossos restos jogados até com certo prazer nas praças e ruas. Questionado sobre isso, meu compadre franziu o sobrolho, engasgou-se e não conseguiu responder.


Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

0 comentário

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.