Cultura
Veja estas canções
Três títulos em cartaz e um quarto prestes a estrear atualizam o histórico diálogo entre cinema e música brasileiros


A parceria entre cinema e música brasileiros desde sempre deu samba. As estreias de filmes que visitam o cancioneiro de Lupicínio Rodrigues, Adoniran Barbosa, do coletivo Clube da Esquina e de Luiz Melodia trazem mais que memórias de outros tempos. O próprio País está refletido nestas histórias que indicam que, há não muito tempo, éramos uma terra habitada por gente gentil.
A concentração de lançamentos com perfis parecidos não chega a ser novidade. Nos anos 2000, as boas bilheterias das cinebiografias Cazuza – O Tempo Não Para (2004) e 2 Filhos de Francisco (2005) definiram um modelo. Desde então, a produção de documentários, gênero que demanda menor orçamento que as ficções, frutificou. Narrar a vida e a obra de grandes e pequenas estrelas da música contornava as dificuldades de se conceber e desenvolver boas histórias originais. Além disso, personagens conhecidos facilitam a tarefa de atrair público.
Mas é fato que a convergência entre cinema e música popular é do tempo da onça. Assim que o cinema virou sonoro, no fim dos anos 1920, os personagens passaram a cantar. No Brasil, não foi diferente. As cantoras do rádio subiram às telas na década seguinte em produções da Cinédia. De 1940 a 1960, o nacional-popular era representado pelas chanchadas da Atlântida, recheadas de números musicais. A geração do Cinema Novo pretendeu exorcizar a fama de veneno de bilheteria mesclando atores e cantores em Quando o Carnaval Chegar (1972). Nos anos 1980, Bete Balanço (1984) potencializou a irrupção do BRock.
Confissões de Um Sofredor, Saudosa Maloca, Nada Será Como Antes – os três em cartaz nos cinemas – e No Coração do Brasil – destaque do Festival É Tudo Verdade, que começa no dia 4 de abril – são, portanto, trabalhos que conversam com a memória.
Lupicínio Rodrigues é o que está mais distante no tempo histórico. O compositor gaúcho viveu entre as décadas de 1910 e 1970, período em que o Brasil passou de pré-moderno a industrializado e urbanizado. Em sua época, depressão, tristeza e melancolia cabiam no que se chamava de fossa. Os versos de Lupi, como era tratado pelos amigos, devolveram dignidade à “cornitude” e à “dor de cotovelo”.
A reconstituição do percurso de Lupi, do quase anonimato em Porto Alegre à quase fama como compositor favorito das rainhas do rádio no Rio, é feita pelo diretor Alfredo Manevy sem se restringir aos dados biográficos. Os versos das canções, as técnicas do cantar, os hábitos sociais e os valores morais são recursos que modulam o relato, agregando a ele camadas. Além da trajetória de seu personagem, Confissões de Um Sofredor revela um país distante no tempo e no espírito, acolhedor e sentimental.
Transformar artistas famosos em personagens facilita o caminho rumo ao público
Saudosa Maloca converte em ficção parte do universo social representado nos sambas de Adoniran Barbosa. O diretor Pedro Serrano, que havia realizado o documentário Adoniran – Meu Nome É João Rubinato (2018), baseia seu argumento nos sambas mais conhecidos do compositor paulista. A mãe que não dorme enquanto o filho não chega, os amigos Mato Grosso e Joca, o Arnesto que mora no Brás e a bela Iracema são personagens de uma cidade feita de demolição e construção. A existência condicionada pelos ritmos do trabalho, as violências e o individualismo, marcas do cinema paulista desde os anos 1950, cedem espaço à malandragem, ao improviso e à imagem da cidade como mistura, em vez de apartheid.
Valores como família e amizades perpassam a história reconstituída em Nada Será Como Antes. Todos os integrantes do Clube da Esquina aparecem em depoimentos atuais no documentário de Ana Rieper, com exceção de Fernando Brant, morto em 2015. O tom fraternal predominante nas entrevistas torna o filme um pouco oficial em alguns momentos. Mas a costura de lindas imagens de arquivo e a preocupação de dar imagem e voz a todos os participantes, em vez de se concentrar nos luminosos, produz um efeito justo.
No Coração do Brasil reconstitui o fio da carreira de Luiz Melodia. Preto, de família pobre, nascido e crescido no Estácio, ele encarna a figura do artista que se destaca por talento e teimosia, sobrevivendo a um período histórico em que marginalidade implicava invisibilidade.
A singularidade de Melodia não era apenas musical e poética, como mostra com delicadeza o documentário de Alessandra Dorgan. O rico depoimento autobiográfico que acompanha as imagens de arquivo confirma que boas histórias ficam melhores quando contadas por quem as viveu. •
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Veja estas canções ‘
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