Cultura
Vale a pena ser poeta
Ainda gosto de poesia e me sinto meio solitário nesse mundo de Twitter. Tenho a impressão de que ninguém mais tem paciência ou saco pra ler
Sempre que acabo de ler um livro de poesia, como agora acabei o Toda Poesia de Paulo Leminski, eu me lembro que um dia também fui poeta. Sim, poeta publicado inúmeras vezes no Suplemento Literário do Minas Gerais, no Versus, no Vapor. Hoje, essas páginas amareladas e cheirando a mofo estão escondidas a sete chaves num baú de madeira pra ninguém ler.
Escrevia poesias concretas ou não. Umas tinham até gostinho de samba tipo Martinho da Vila.
Todos os amores
Que passaram por meu corpo
Deixaram cicatrizes profundas
Oriundas
De noites de orgia e loucura
Noites puras
Que deixaram essas marcas
Mas fecharam as feridas
Da minha alma
Imunda
Ainda gosto de poesia e me sinto meio solitário nesse mundo de Twitter. Tenho a impressão de que ninguém mais tem paciência ou saco pra ler poesia. Adoro reler Drummond, Augusto dos Anjos, João Cabral, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Cora Coralina. Adoro também os hai-kais, poesias curtas como Tatame-o ou Deite-o que redescobri no livro do meu caro Lema.
De colchão em colchão
Chego à conclusão
Meu lar é no chão
Ou então aquela que indaga simplesmente:
Saber é pouco
Como é que a água do mar
Entra dentro do coco?
Gosto de poesias recicladas que resultaram em canções belíssimas como fizeram Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, isso que eu me lembro agora.
Nos anos 70, Caetano foi buscar lá no nordeste de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, nos versos de Paraíba, sua inspiração para compor Terra. O que era:
Hoje eu mando um abraço
Pra ti pequenina
Paraíba masculina
Muié macho sim sinhô
Virou:
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu fosse
O saudoso poeta
E fosses a Paraíba
Também nos anos 70, Gilberto Gil foi buscar no Banho de Lua dos anos 60, na voz de Cely Campelo, sua inspiração para Retiros Espirituais. O que era:
Tomo um banho de lua, fico branca como a neve
Se o luar é meu amigo, censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, oh! Luar tão cândido
Virou:
Retirar tudo o que eu disse, reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, oh, luar tão cândido
Nos anos 2000, Tom Zé viajou até a Inglaterra dos Beatles para compor o seu Roquenrol. O que era:
Obladi, oblada,
Life goes on, bra
La la how the life goes on
Obladi, oblada
Life goes on, bra
La la how the life goes on
Virou:
Um roquenrol, obladi,
bem roquenrol, obladá
balada e soul, obladi,
tal como eu sou, obladá.
Pois é, só hoje de manhã ouvindo Dolores Duran que percebi aqueles versos de Qualquer Coisa do Caetano…
Não se avexe não
Baião de dois
Deixe de manha, deixe de manha, pois
Sem essa aranha! Sem essa aranha!
Sem essa, aranha!…
Veio lá dos anos 50 de uma canção de Chico Anisio e Haidée Paula:
Chega mais um bucadinho
Larga de me olhar
Encrenca num vai dá,
Somo di maió
Podi nem dar confusão
num se avexe, não
Casquinha é bom de se tirá
Embora aproveitar
A melodia do baião
Nesses tempos de braços decepados, dedos de silicone, aparelhos de respiração desligados, essa semana resolvi fazer um passeio pela poesia para aliviar um pouco a dor. Lembrei-me então do velho e bom Jards Macalé da Rua Real Grandeza que, com sua voz rouca, garantia:
Ah Vale A Pena Ser Poeta
Escutar Você Torcer De Volta a Chave
Na Fechadura Da Porta
Abra Volte Veja
Sou Um Cara Sem Saída.
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