Cultura
Uma vida forjada nos tatames
Thierry Frémaux, um dos homens mais influentes do cinema mundial, relata, em livro autobiográfico, a história do judô


“Eu sou faixa preta 4º dan. Quando você é faixa preta, é para a vida inteira. Mas minha vida me conduziu para outro lugar, para o Instituto Lumière de Lyon e para o Festival de Cannes. Os tapetes que agora frequento são vermelhos e levam a outros santuários.”
Entrado na sexagésima década de vida, Thierry Frémaux, um dos homens mais influentes do cinema mundial – e, no campo do cinema de arte, talvez o mais influente – resolveu voltar a um passado do qual se orgulha e que, a um olhar precipitado, soa improvável: o judô.
Judoca insere-se numa linhagem forte da literatura atual: aquela dos autores que, a partir da narrativa sobre si, recuperam épocas, meios sociais e modos de existir de pessoas que o tempo tornou anônimas, mas cujas trajetórias são memoráveis. Frémaux, além disso, nos oferece um olhar sensível sobre os sentidos do esporte praticado a sério – sentidos esses raramente captados ou compreendidos pelos que habitam o mundo intelectual.
Cinéfilo por paixão e ofício, além de leitor voraz, o autor, não poucas vezes, recorre aos filmes para dar forma ao que deseja expressar. Afinal de contas, como diz, esporte e cinema narram o nosso século: “Eles são populares, produzem sentido, sonho e drama”. Em vários momentos, ele estabelece laços entre ambos.
O primeiro paralelo que ele traça é entre a criação dessa arte marcial, por Jigoro Kano, e a do cinematógrafo, por Louis Lumière. Não deixa de haver, nesse cruzamento, certa idealização afetiva. Mas por ser o amor – pelo cinema e pelo judô – o fio condutor da narrativa, isso está longe de ser um problema.
Frémaux, dotado de natureza pesquisadora, oferece, em Judoca, um valoroso relato histórico desse esporte que está longe de ser dos mais populares no Ocidente – ainda que seja, na infância, muito praticado. O judô, nos conta ele, um pouco como um sensei, nasceu em 1882, ano 15 da era Meiji, na escola Kodokan, o “lugar onde se revela o caminho”.
O livro se deterá sobre sensei Jigoro Kano, o criador do judô, cujo retrato segue a ocupar as paredes de dojos mundo afora. A infância de Kano, que perdera a mãe aos 10 anos, faz Frémaux lembrar-se do cineasta Yasujirō Ozu e, é claro, do personagem de Sugata Sanshiro em A Saga do Judô, o primeiro filme de Akira Kurosawa.
Kano, ao entrar na faculdade para estudar literatura e filosofia, resolveu estudar também uma antiga luta japonesa, o jujusu. “A arte da luta é necessária ao indivíduo para cultivar a força que lhe permitirá se defender e preservar um caráter determinado”, escreveu, em 1915. Para ele, não haveria desenvolvimento moral sem a expansão do corpo, nem realização pessoal sem o cuidado com o outro.
JUDOCA. Thierry Frémaux. Tradução: Eloísa Araújo Ribeiro. Fósforo (272 págs., 89,90 reais) – Compre na Amazon
O relato de Frémaux será, no fundo, sobre isso: sobre o esporte “formar o tangível” e nos fazer experimentar, muito cedo, não tanto a vitória, mas, em especial, a derrota; sobre o “doce sofrimento dos atletas”; e sobre a queda. “A competição conduz a outra existência, na qual reinam o caráter, a vontade e a força (…) Obrigada à vulnerabilidade e ao confronto com a hostilidade do real.”
O diretor do Festival de Cinema de Cannes passou a infância em alguns dos grandes conjuntos residenciais, chamados cités, comuns na França nas décadas de 1960 e 1970. Neles havia os clubes onde se deu sua formação como atleta. E havia também as bibliotecas.
Frémaux, além de treinar, lia muito e, de início, lia, sobretudo, a respeito de esportes. Era aficionado pelo espírito do judô, por seu vocabulário – zarei, ô-soto-gari, randori – e sua combatividade, mas sabia também tudo sobre ciclismo e se impressionava com os feitos de Mark Spitz nas piscinas.
Acontece que os tempos eram de engajamento político e o esporte era considerado o ópio do povo. Não demorou para que aprendesse a, fora do clube, esconder seu fervor: “Não achava que ser torcedor de um time fizesse de mim um ser social desprezível, mas aprendi a ser cauteloso”.
É ao fazer essa interseção entre arte e esporte, intelecto e corpo, que Judoca se torna um grande livro. O olhar de Frémaux é nem o dos atletas de altíssimo rendimento – que, talhados para o treinamento extremo, tendem a focar seus relatos nas ideias de superação e resiliência – nem o dos escritores que admiram o esporte, mas não tiveram a própria psique forjada por uma carreira de atleta.
Frémaux foi uma promessa em sua região, conheceu o gosto de ser campeão em torneios importantes e foi professor de judô. A vida lhe reservou, porém, outras glórias – as dele próprio, e as dos cineastas, atores e atrizes.
“Tenho uma vida bem cheia (…) recebi Julia Roberts no topo das escadarias, sou amigo de Jean-Michel Aulas, tenho um trator Massey Ferguson e uma bicicleta Look carbono. Mas deixei de lado o judô (…) Não tenho mais os reflexos, a postura e os pensamentos de um judoca (…) Não sei mais onde está a mochila com minhas coisas”, descreve. “Para aqueles que praticaram judô, e seja lá o que for que suas vidas tenham se tornado depois, o quimono será para sempre o traje do orgulho.”
A decisão de escrever essa história foi tomada enquanto assistia, na ilha de edição, nos Estados Unidos, a Era Uma Vez em… Hollywood. O filme de Quentin Tarantino despertou nele o desejo de visitar a própria memória e, com isso, reconstruir um passado que não existe mais.
Foi por amor ao cinema que, a certa altura da vida adulta, Frémaux renunciou ao judô. Mas, embora pouca gente soubesse disso até Judoca ser publicado, no alto da escadaria do Palais des Festival, em Cannes, sempre esteve postado um judoca. Como não desconfiamos disso? •
Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.
Leia também
