Cultura
Uma vida cena a cena
A reunião, em livro, do vasto acervo do cenógrafo e diretor Gianni Ratto revela a riqueza de seu percurso artístico


É, sobretudo, por meio de croquis, desenhos, esboços e manuscritos que o livro O Teatro de Gianni Ratto: Mago dos Prodígios (Edições Sesc São Paulo, 400 págs., 126 reais) percorre as seis décadas da trajetória do cenógrafo e diretor, cuja vida se deu metade na Itália, metade no Brasil.
O livro, organizado por Antonia Ratto e Elisa Byington, deriva da exposição Gianni Ratto – 100 Anos, exibida em 2017 no Sesc Consolação, em São Paulo, e, além de conter tudo o que lá foi exposto, traz novas imagens e um conjunto de textos inéditos.
Ratto nasceu em Milão, em 1916. Se a tenra infância foi passada durante a Primeira Guerra Mundial, os anos formativos foram marcados pelos impactos da Segunda Guerra, que o jogaram numa militarização forçada. Quando, no meio do conflito, seu batalhão foi transferido para a Grécia, ele desertou do exército de Mussolini e lá ficou por algum tempo.
No texto introdutório do livro, Antonia Ratto, sua filha, conta que foi apenas ao fim da Guerra que o pai pôde voltar para Milão. Na cidade ainda marcada pelos bombardeios, passou a dar vazão à formação artística que remontava à infância – sob condução da mãe, pianista – e que, antes da eclosão da Guerra, já tinha começado a ser colocada em prática.
Sua ânsia por realizações era tão grande que, em nove anos, assinou a cenografia de nada menos que 120 espetáculos. No Scala de Milão, por exemplo, fez os cenários das óperas dirigidas por Giorgio Strehler (1921-1997). Também o Piccolo Teatro de Milão e a Opera di Roma tiveram seus palcos ocupados pelos cenários que desenhava magistralmente.
Cenógrafo de prestígio na Itália, Ratto, ao vir para o Brasil, tornou-se também diretor
O salto rumo à direção se daria em 1954, a partir um convite que tanto o surpreendeu quanto o atraiu: aquele feito por Maria Della Costa e Sandro Polônio, para que se mudasse para o Brasil. Ratto não tinha ainda 40 anos e, de acordo com Elisa Byington, embora fosse naquele momento o mais disputado cenógrafo italiano, acalentava o desejo de ter sob sua responsabilidade um espetáculo inteiro.
“Aprisionado pela fama de cenógrafo na Itália, Ratto viu no convite a oportunidade de abraçar o espetáculo como um todo”, escreve Elisa, no livro. “A primeira década de Gianni Ratto no Brasil é marcada pelo encontro mágico entre o cenógrafo que queria dirigir e os atores que desejavam alguém com sua experiência e visão universal do teatro.”
Aqui, estreou como diretor em 1954, com O Canto da Cotovia. A profícua nova carreira incluiria textos políticos – como a primeira montagem de Gota d’Água, com Bibi Ferreira – e clássicos; novos e velhos autores; montagens reflexivas e o mais puro entretenimento. Autor de cinco livros, trabalhou praticamente até morrer, em 2005, aos 89 anos.
Parte de seu percurso já havia sido documentada no filme A Mochila do Mascate (2007), dirigido por Gabriela Greeb. Mas foi apenas depois de sua morte que os materiais que guardava sistematicamente em sacos plásticos começaram a ser organizados.
Os desenhos, esboços, manuscritos, croquis, projetos e cartas trocadas com interlocutores artísticos recolhidos pela filha e por sua última companheira, Vaner Ratto, resultaram, em um primeiro momento, na exposição Gianni Ratto – Artesão do Teatro, realizada na antiga galeria da Caixa Econômica Federal, na Avenida Paulista.
Concepção. Os esboços e croquis feitos a lápis e aquarela mostram o processo de elaboração de tribunais, salas palacianas, quartos minúsculos, becos e jardins – Imagem: Everton Ballardin
Desse projeto surgiu outro mais ambicioso: a criação do Instituto Gianni Ratto e a catalogação de todo o acervo agora reproduzido em livro. “A seleção das montagens aqui apresentadas busca organizar um panorama de sua obra, com destaque para a iconografia de projetos de cenário e alguns figurinos”, escreve Ana.
A escolha, explica ela, levou em conta a relevância dos espetáculos, mas não apenas isso. Foram também selecionados trabalhos que, ainda que menos importantes historicamente, ilustram “seus métodos de concepção de desenvolvimento de projetos”.
Ratto elaborou de forma minuciosa salas palacianas, quartos minúsculos e sombrios, praças, becos, jardins etc. Para dar forma aos espaços cênicos, consultava livros, refazia contextos históricos e, no momento em que colocava o lápis ou a tinta sobre o papel, se deixava levar pela inspiração plástica e arquitetônica.
No livro, as fases italiana e brasileira aparecem divididas. Lá, ele foi o grande cenógrafo a trabalhar com um teatro bem estabelecido, como o Piccolo de Milão. Aqui, tornou-se o diretor que colaborou para a construção das bases do moderno teatro brasileiro. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Uma vida cena a cena “
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