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Uma rotina feita de inércias

A longa duração dos filmes de Nuri Bilge Ceylan espelha a incapacidade e a insatisfação dos personagens

Uma rotina feita de inércias
Uma rotina feita de inércias
Ervas Secas, novo trabalho do diretor turco, estreou na quinta-feira 7 – Imagem: Imovision/Telecine
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Não é só a disputa de melhor filme no Oscar que está cheia de trabalhos longos. As 2h31 de Anatomia de Uma Queda concorrem de perto com as 2h21 de Pobres Criaturas, as 2h13 de Os Rejeitados e as 2h09 de Maestro. Esta categoria “intermediária”, no entanto, perde para as 3h de Oppenheimer e as 3h26 de Assassinos da Lua das Flores.

Ervas Secas, filme escolhido pela Turquia para representar o país na disputa deste ano, não chegou à reta final, mas se manteria na vice-liderança se o critério fosse duração. Suas 3h17 podem parecer intermináveis a quem considera que filmes têm de obedecer ao ritmo acelerado com que consumimos e descartamos outros produtos.

Sono de Inverno (2014) e A Árvore dos Frutos Selvagens (2018), filmes anteriores do diretor Nuri Bilge Ceylan, também impunham a longa duração como meio de transmitir a incapacidade, a indecisão e a insatisfação que imobilizam seus personagens.

A rotina de Samet, professor de Artes numa escola de um vilarejo da ­Anatólia, é composta de inércias. A neve que cobre a região a maior parte do ano impõe uma lentidão aos passos e uma reclusão aos corpos. Samet cumpre um prazo num lugar que não tolera, enquanto aguarda a possibilidade de transferência para Istambul.

Há fiapos de tramas dispersos entre os extensos diálogos. Duas alunas acusam os professores Samet e Kenan de assédio. A presença da bela Nuray (Merve Dizar, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes) corrói a camaradagem entre Samet e Kenan e desvela um quadro de valores tradicionalista em que divergências de ideias e comportamentos são punidas com rigor.

Na escola, diretores e inspetores agem como policiais, vasculhando carteiras e mochilas em busca de indícios de vontades próprias. Nos espaços domésticos, os personagens se censuram e reprimem desejos e ideias.

Fala-se muito, até demais, em Ervas Secas. A câmera fixa registra as longas conversas, revelando a rigidez dos argumentos, assim como dos corpos.

Em meio ao excesso de palavras, Ervas Secas acumula uma coleção ainda maior de não ditos. O desejo pedófilo de Samet pela aluna Sevim nunca é explicitado, assim como a política, que atravessa as cenas como um fio tensionado.

Sem verdades prontas, sem mensagens que cabem em duas linhas, Bilge Ceylan faz um cinema na contramão do entretenimento. Ervas Secas é, claro, um filme difícil de assistir. Mas que segue com a gente, enquanto a memória dos outros se dissipa logo que as luzes se acendem. •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma rotina feita de inércias’

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