Cultura
Uma questão de classe?
Félicien Faury usa a Sociologia para tentar compreender a “normalização” social das ideias da extrema-direita


Félicien Faury, pesquisador do Centro Nacional da Pesquisa Científica, é um jovem sociólogo em ascensão. Seu livro de estreia, Des Électeurs Ordinaires. Enquête Sur la Normalisation de l’Extrême Droite (Eleitores Comuns: Investigação Sobre a Normalização da Extrema-Direita, não traduzido para o português), recentemente lançado na França pelo selo Seuil, vem causando grande impacto no debate intelectual e político do país.
Quando nos encontramos num café do Norte de Paris – região mais popular e efervescente da cidade –, Faury confessou a dificuldade em atender todas as solicitações de entrevistas. Por sorte, ou por ter achado curioso uma revista brasileira tê-lo procurado, topou a conversa.
Coincidentemente, pouco antes do nosso encontro, o presidente da França, Emmanuel Macron, havia nomeado para o cargo de primeiro-ministro Michel Barnier, antigo quadro dos Republicanos, partido da direita conservadora. Para tanto, contou com a concordância de Marine Le Pen, líder do Reunião Nacional (RN).
Era mais uma demonstração de que, embora não tenha vencido as eleições legislativas antecipadas em julho, o RN continua de vento em popa. E o principal objetivo de Eleitores Comuns é, justamente, compreender de que forma a progressão eleitoral permanente do RN na última década se vincula a um processo de “normalização” social das ideias da extrema-direita.
“Esses eleitores se ressentem tanto da pressão vinda ‘de cima’ quanto daquela vinda dos grupos mais precarizados”
Ao longo de duas horas de conversa, Faury falou sobre alguns dos aspectos mais importantes da inquietante ascensão da extrema-direita no país que, em teoria, ainda é guiado pela consigna da revolução de 1789: “liberdade, igualdade, fraternidade”. Em teoria.
CartaCapital: Nas últimas eleições legislativas, a França conseguiu impedir a chegada da extrema-direita ao poder, mas o bode segue na sala: ainda que não tenha elegido o maior número de deputados, o RN foi o partido com maior número de votos nos dois turnos. Como chegamos a esse ponto?
Félicien Faury: De certa forma, é bastante lógico. Nas últimas eleições, a surpresa foi muito mais a forte mobilização da esquerda do que o recuo da extrema-direita. As curvas de voto no RN não param de subir desde 2010. Em número de sufrágios, o partido bateu o recorde no primeiro turno das eleições legislativas. Ao mesmo tempo que avança ainda mais no seu eleitorado tradicional (empregados, baixa classe média ou operários), o RN progride em outras categorias sociais, como os aposentados, ou os altos quadros das administrações públicas ou privadas. Então, um novo limiar foi ultrapassado. Se o RN ainda não chegou ao poder, é porque houve fortes reações na sociedade contra a extrema-direita.
Distinção. Para quem vota na extrema-direita, dizer-se católico é, hoje, uma forma de legitimar um preconceito que é também racial – Imagem: iStockphoto
CC: Em geral, as análises do voto na extrema-direita oscilam entre abordagens mais “estruturais” – que enfatizam fenômenos como a globalização neoliberal e a desclassificação social etc. – e abordagens “culturais” ou “identitárias”, focadas no racismo. Como superar essa antinomia?
FF: Diante dessa dicotomia, fiz dois movimentos concomitantes. Primeiro, o de não me contentar com uma única explicação, procurando ver como as questões de classe e raça se articulam. No início, tratava-se de uma questão empírica indutiva: quando eu entrevistava um eleitor do RN, ele não fazia distinção entre o racismo e seu poder de compra ou seus problemas de moradia. O RN compreendeu bem cedo essa articulação. Já no fim dos anos 1970, um dos slogans do partido (até 2018 chamado Frente Nacional) era: “1 milhão de imigrantes é 1 milhão de franceses desempregados a mais”. O segundo movimento é o de compreender o racismo como um fenômeno coletivo, transversal e multifacetado, que se encontra em todos os ambientes sociais, mas de formas diferentes. O racismo atravessa toda a sociedade, mas nem sempre se traduz eleitoralmente. Isso é o que me interessou: como o racismo é politizado eleitoralmente pelos eleitores da extrema-direita?
CC: No livro, você mostra como os eleitores do RN do Sudeste da França se encontram num “entrelugar socioterritorial”, já que não vivem nem nas regiões das classes altas nem nos bairros mais pobres. Como essa posição favorece o voto na extrema-direita?
FF: Esse ponto é extremamente importante. O Sudeste é uma região muito desigual, onde vemos a olho nu as desigualdades no território, nas residências etc. Os eleitores desse “entrelugar” – eles não vivem nos bairros mais pobres e, muitas vezes, são proprietários de suas casas – têm a impressão de que seu bairro está se deteriorando. Eles sentem que a pobreza invade seus territórios, e, ao mesmo tempo, que as regiões mais ricas são inacessíveis. É o que Olivier Schwartz chama de “consciência social triangular”. Já não estamos numa consciência social de antagonismos de tipo binário, isto é, entre proletários e burgueses. Esses eleitores se ressentem tanto de uma pressão vinda “de cima”, como no conflito de classe tradicional, quanto daquela vinda “de baixo”, dos grupos mais precarizados, como os imigrantes. Enquanto a pressão “de cima” é encarada como algo imutável, a pressão “de baixo” é vista como escandalosa, intolerável e, sobretudo, evitável: os eleitores do RN realmente acreditam que seria possível barrar a imigração, por exemplo.
CC: Qual a relação do voto na extrema-direita com o catolicismo e com a laicidade?
FF: Em geral, as pessoas que votaram no RN são sem religião ou católicas não praticantes. Elas se dizem católicas ou cristãs como uma forma de marcar suas diferenças culturais em relação aos muçulmanos – muitas vezes considerados como sinônimos de árabes, negros ou turcos. No limite, a religião é uma forma de legitimar o preconceito racial. Em relação à laicidade, trata-se de uma tradição muito importante na França. Mas, nos últimos 20 ou 30 anos, ela virou uma noção abraçada pela direita e pela extrema-direita, que dela se servem contra o Islã.
Já nos anos 1970, a Frente Nacional buscava atrelar os imigrantes a uma ideia de ameaça
CC: Você relata o caso de um brasileiro que, como outros imigrantes naturalizados, é particularmente crítico em relação aos “maus imigrantes”, ou seja, aos árabes e/ou muçulmanos. O que explica esse fenômeno?
FF: É uma pessoa que sofreu racismo quando chegou na França e que continua a sofrer. Ele próprio sabe o quanto foi colocado na mesma caixa que os outros imigrantes, incluindo os árabes e muçulmanos. E qual a melhor maneira de se diferenciar deles? Votar no RN, para se posicionar do lado dos dominantes nas hierarquias sociais racializadas. Nesse sentido, o voto no RN é um voto de integração à “maioria”, de distinção em relação aos que estão “abaixo”.
CC: Qual é o papel da crítica às “elites” no discurso dos eleitores da extrema-direita e quais são as consequências dessa crítica na percepção da dominação “econômica” e “cultural”?
FF: Os eleitores do RN detestam, sobretudo, as elites políticas e culturais. Em geral, são pessoas com baixo capital cultural em comparação com o capital econômico. São pessoas que atribuem sua posição social ao trabalho, mais do que à escola. Já em relação às elites culturais, observa-se um ressentimento muito grande, mesmo quando as disparidades sociais são pequenas. Ou seja, a crítica à dominação cultural é mais forte do que a crítica à dominação econômica, que, no entanto, é muito mais importante.
CC: Como você vê a responsabilidade da esquerda nesse processo?
FF: É enorme. Em particular, mais recentemente, no governo de François Hollande, do Partido Socialista, que aplicou uma série de medidas neoliberais e islamofóbicas. O desafio é como dialogar com os eleitores do RN. O que a esquerda pode oferecer a eles? Antes de tudo, é preciso considerar que esses eleitores sabem o que fazem quando votam no RN, especialmente em questões de migração e insegurança. Eles não são simples idiotas. Nesse cenário, a esquerda precisa quebrar o fatalismo econômico e de classe, mostrando a esses eleitores que sua situação social pode melhorar sem a necessidade de degradar a das minorias, como defende o RN. •
*Professor de Sociologia na Unicamp. Atualmente, é pesquisador e professor convidado na Universidade Paris Cité.
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma questão de classe?’
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