Cultura
Uma princesa agora imperfeita
Corsage desconstrói o imaginário difundido por Sissi e reflete sobre o papel do cinema na criação de um certo ideal feminino


A imagem das princesas foi moldada por animações da Disney e pela trilogia Sissi, que converteu a imperatriz Elisabeth da Áustria no retrato de faces rosadas e olhos faiscantes de Romy Schneider. Corsage, em cartaz desde a quinta-feira 12, reencontra Elizabeth ocupando o mesmo posto real, mas recoberta por outras vestes e significados.
O longa-metragem dirigido pela austríaca Marie Kreuzer vem sendo comparado às desconstruções dos mitos de figuras reais feitas em Maria Antonieta, por Sofia Coppola, e em Spencer, por Pablo Larraín.
De fato, os três filmes dedicam-se, em parte, a corroer as imagens prontas, mostrando suas personagens históricas sob uma luz dissonante. E a exibir as fragilidades que ficaram mascaradas sob o manto da perfeição ou da felicidade imposto pela realeza. Corsage, contudo, dialoga de modo mais direto com o papel do cinema na construção de um imaginário e de ideais femininos.
Os três filmes dirigidos pelo austríaco Ernst Marischka entre 1955 e 1957 faziam parte de uma estratégia de produzir uma boa imagem da Áustria, corroída pelos comprometimentos com o nazismo até uma década antes. A doçura, o ar juvenil e o romantismo cafona temperavam aquelas produções em que Schneider assumia a aura de perfeição para as moças dos anos 1950.
A atriz austríaca retomou a personagem em Ludwig. No filme de 1972, de Luchino Visconti, monstro sagrado do cinema italiano, Sissi ressurgiu envolta em sombras. No lugar da inocência primaveril dos anos 1950, a onda feminista que emergiu nas décadas seguintes já havia libertado sua consciência em relação às armadilhas do poder.
O título Corsage remete a um forte símbolo de contenção e restrição: o corpete que moldava a figura feminina, impondo aos corpos uma forma quase inumana.
A atriz Vicky Krieps, premiada pelo desempenho no Festival de Cannes de 2022, completa a releitura a contrapelo. Sua Elizabeth não é uma anacrônica adolescente revoltada, mas uma mulher madura, refém dos códigos restritos e curiosa pelas novidades, entre as quais estava o cinema.
A técnica, que ela descobre por meio do inventor Louis Le Prince, um dos pioneiros do cinema, revela-se como novo meio não apenas de registrar, mas também de construir imagens.
Em vez da modorrenta fórmula das cinebiografias, Corsage arranca Sissi de sua prisão romântica para mostrá-la como testemunha de seu próprio tempo.
Por meio de seu olhar, a política escapa da alçada patriarcal e revela-se nos corpos e nos hospitais, onde as mulheres eram tratadas como “histéricas”. Quando jovens, elas apenas reproduziam a velha ordem.
Elizabeth deixa de ser, assim, uma figura histórica e torna-se uma alma viva, que pulsa e ainda transmite sinais. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Uma princesa agora imperfeita”
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