Cultura
Uma postagem, uma respiração
O cineasta francês Laurent Cantet constroi uma crônica frenética sobre a vida regida pelas redes sociais
“Postar é como respirar. Uma postagem, uma respiração. Uma postagem, uma respiração”, diz, tentando a um só tempo explicar e entender os próprios impulsos, Karim D., o protagonista de Arthur Rambo, que estreou no Brasil na semana passada com o subtítulo Ódio nas Redes.
Dirigido por Laurent Cantet, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 2008, com Entre os Muros da Escola, o longa-metragem é uma vertiginosa crônica sobre as identidades forjadas entre o real e o virtual.
Karim D., vivido pelo ótimo ator Rabah Nait Oufella, um dos meninos de Entre os Muros da Escola, é um jovem de origem argelina que, no começo do filme, se vê numa veloz escalada de sucesso.
A partir da história de sua mãe, ele escrevera um romance que aponta a dureza da vida dos imigrantes nas bordas de Paris. O livro mobiliza a mídia, atrai uma produtora de cinema e faz com que o autor passe a ser bajulado em círculos até então inacessíveis para um jovem periférico.
Não demorará muito para que descubramos, porém, que Karim é também Arthur Rambo, um influencer com mais de 200 mil seguidores. Seus posts são frases de ódio contra judeus, gays, mulheres e, vez por outra, até mesmo contra árabes. Quando essa identidade é revelada, seu mundo desmorona.
O roteiro é baseado em uma história real, ocorrida cinco anos atrás com um blogueiro francês. Rambo, em francês, pronuncia-se Rambô. O som é o mesmo de Rambo, o personagem de Sylvester Stallone, e também de Rimbaud, o poeta. Entre a violência destilada sob o pseudônimo virtual e a sensibilidade demonstrada como escritor, quem é Karim? E quem deseja, no frenesi dos cancelamentos e engajamentos, saber quem é ele de fato?
“Você denuncia (no livro) o que você pratica (nas redes)”, acusa a editora, inconformada com a inevitável queda nas vendas do romance. “A provocação está na moda”, justifica outro.
Narrado de forma intensa, com som e imagem nem sempre sincronizados e hashtags invadindo a tela, o filme adere, em sua linguagem, à sensação de pressa tão característica das redes sociais. Mas Cantet sabe o valor das pausas, e não abre mão delas. Em alguns momentos, a confusão está expressa tão somente no olhar de Karim.
Ao redor do protagonista gira uma imensa variedade de personagens que, embora não aprofundados, são cirúrgicos em suas presenças. O irmão de Karim, por exemplo, dá rosto e voz à figura dos “seguidores”, essa multidão anônima que, com cliques e comentários, tem forjado anjos e demônios. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Uma postagem, uma respiração”
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