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Uma ode à vida comum

Com ‘Dias Perfeitos’, um filme pequeno e lento, Wim Wenders cai de novo no gosto da crítica e chega ao Oscar

Uma ode à vida comum
Uma ode à vida comum
Asceta. Em Dias Perfeitos, rodado pelo cineasta alemão em Tóquio, o ator Kōji Yakusho vive um homem que limpa banheiros, ouve fitas-cassete e sorri – Imagem: Master Mind Ltda e Festival de Berlim
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No início de 2022, Wim Wenders foi convidado para visitar Tóquio e conhecer alguns banheiros públicos. O convite veio do projeto de arte Tokyo Toilet, que contratou arquitetos e designers para criar 17 banheiros esteticamente bonitos no bairro de Shibuya. “Sabemos que você gosta do Japão e de arquitetura”, eles me disseram. “Então, gostaríamos que viesse ver os nossos lindos banheiros. Se gostar deles, talvez possa fazer uma série de documentários curtos a respeito.”

O convite chegou num momento oportuno para Wenders, que, como ele mesmo diz, estava “com muitas saudades de Tóquio”, cidade que visitou com frequência, desde que fez um filme sobre o estilista de moda Yohji Yamamoto, em 1989.

O cineasta aceitou o convite e, ao ver o projeto, ficou convencido de que “a beleza e a tranquilidade” daqueles pequenos lugares seriam mais bem evocadas em um longa-metragem de ficção, que, garantiu ele aos anfitriões, poderia ser realizado com um orçamento baixo e nos mesmos 16 dias de filmagem. Para sua surpresa, eles concordaram quase imediatamente. “Tudo aconteceu tão rápido…”, diz, “mas rápido é lindo. Rápido é um presente. Rápido é criatividade solta.”

O resultado final é, porém, uma aula mestra de cinema lento. Em Dias Perfeitos, não acontece muita coisa, mas o pouco que acontece é estranhamente fascinante. O roteiro, feito com o escritor japonês Takuma Takasaki, inclui uma série de pequenas variações sobre um tema: a rotina diária de Hirayama, um indivíduo solitário, mas satisfeito, cujo trabalho é limpar e manter os banheiros de Shibuya. “É um filme pequeno, sim”, concorda Wenders. “Mas também o primeiro que fiz depois da pandemia. Eu o vi como um novo começo.”

“Acho que muita gente vê o filme e sente saudade de um estilo de vida mais simples, de uma redução do que temos e consumimos”

Em uma era de filmes audaciosamente grandes e épicos, como Oppenheimer e Assassinos da Lua das Flores, a meditação contida de Wenders sobre a vida simples parece ter tocado a sensibilidade da crítica e do público. Em 2023, Kōji Yakusho, que interpreta Hirayama, ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes.

De onde veio a ideia de um personagem principal tão ascético? “Eu o criei na minha imaginação, e o encontramos em duas semanas. Precisávamos de alguém que estivesse atento a tudo ao seu redor e que pudesse mostrar o que vive através de seus olhos. É preciso um grande ator para transmitir pequenos gestos, abrir uma porta pela manhã, olhar para o céu e ser significativo.” O filme também concorre ao prêmio de melhor longa-metragem internacional no Oscar, sendo a primeira vez que o Japão seleciona um diretor não japonês.

Encontro Wenders na ampla sede de sua produtora, a Road Movies, no bairro Mitte, em Berlim. Aos 78 anos, ele exala uma calma descontração, suas respostas são ponderadas e muitas vezes minuciosas. “Os filmes, hoje em dia, são um produto”, diz, a certa altura, com tristeza. “A beleza de Dias Perfeitos é que eu não tinha ninguém olhando por cima do meu ombro. Havia pouco dinheiro, mas liberdade total.” Dias Perfeitos é seu 23º longa-metragem e tem sido saudado como o retorno à boa forma de um diretor que, ultimamente, vinha sendo mais elogiado pelos documentários.

Na atuação perfeita de Yakusho, ­Hirayama, o limpador de banheiro aparece como um homem fora do tempo, alguém que se afastou de uma vida mais privilegiada por motivos que nunca são explicados. Ele mora num apartamento pequeno e espartano em um bairro da classe trabalhadora, lê romances que compra em sebos e ouve as mesmas fitas cassete – The Kinks, Nina Simone, Velvet ­Underground – enquanto vai e volta do trabalho. Na hora do almoço, senta-se calmamente num banco do parque, absorvendo o mundo comum ao seu redor e, às vezes, tirando fotos das árvores. À noite, come no mesmo café e vai ao mesmo bar.

Longa jornada. Com o memorável Asas do Desejo (1987), filme no qual anjos vagam por Berlim, Wenders, que chegou a filmar nos Estados Unidos, passou a se ver, enfim, como um artista alemão – Imagem: MGM/Das Werk

Suas interações com personagens passageiros, incluindo seu colega de trabalho irresponsável, sua adorável sobrinha e um desconhecido que tem uma doença terminal, são fugazes, mas significativas. A chegada de sua irmã distante em um carro com motorista, sendo sua óbvia riqueza um sinal da vida anterior dele, perturba brevemente seu equilíbrio. Mas, durante todo o tempo, ele permanece um homem à parte, alguém que encontrou uma profunda paz interior através da rotina simples.

Hirayama contrasta com os personagens inquietos dos primeiros filmes do diretor, seja Philip Winter, o enigmático escritor alemão à deriva na vastidão dos Estados Unidos em Alice nas Cidades (1974) ou o assombrado Travis Henderson caminhando pela interminável paisagem desértica em Paris, Texas (1984). “Esses filmes são sobre buscadores, personagens que procuram, mas não encontram. ­Hirayama não está procurando”, diz.

Ele faz uma longa pausa, perdido em pensamentos, e prossegue: “Todos os meus filmes tratam dessa questão de como viver, mesmo que, antes, eu não soubesse disso, porque também estava em busca de respostas. Dias Perfeitos é uma resposta bastante precisa. “Acho que muita gente vê o filme e sente saudade de um estilo de vida mais simples, de uma redução do que temos e consumimos. Em muitos aspectos, Hirayama é um exemplo perfeito de como viver.”

Wenders atingiu a maioridade como cineasta no início dos anos 1970, depois de ter estudado Medicina e decidido ser pintor, e faz parte de uma geração de autores, incluindo pioneiros como ­Werner Herzog e o falecido Rainer Werner ­Fassbinder, que formaram um movimento conhecido como Novo Cinema Alemão.

“Todos os meus filmes tratam dessa questão de como viver, mesmo que eu não soubesse disso”

Fez uma trilogia inicial de road movies e tornou-se mais conhecido com O Amigo Americano (1977). Fez seu nome, de uma vez por todas, com Paris, Texas (1984), em que exala certo espírito americano, e Asas do Desejo (1987), filme enfaticamente europeu ambientado em Berlim, com anjos que vagam pela cidade como presenças invisíveis. Wenders contou-me que levou muito tempo para aceitar o fato de que era um artista alemão, o que finalmente aconteceu ao fazer Asas do Desejo.

Sua longa jornada como cineasta refletiu, até certo ponto, suas próprias preocupações, particularmente sua espiritua­lidade permanente. Hirayama, em Dias Perfeitos, leva uma existência quase santa, embora seja mais zen-budista em temperamento do que cristão. Ele ainda é, pergunto, uma pessoa religiosa? “Eu me descreveria como uma pessoa muito espiritual”, responde, “o que significa que sou profundamente religioso, mas não sou amigo da religião organizada.”

Faz sentido, portanto, que, na figura solitária, mas satisfeita, de Hirayama em Dias Perfeitos Wenders tenha criado uma espécie de santo dos últimos dias, cuja vida quase sagrada é vivida sem a bagagem da religião organizada. O filme afirma silenciosamente a vida ao insistir que uma vida comum vivida plena e atentamente atinge uma dimensão espiritual.

Nisto ecoa o trabalho do seu grande herói cinematográfico, Yasujirō Ozu. “Você sai de um filme de Ozu e vê o mundo de forma diferente”, diz. “Mesmo que conte apenas uma história familiar comum, de alguma forma transcende o comum por causa de sua humanidade e espiritualidade.”

Ele faz mais uma pausa por um longo momento. “O que aprendi desde cedo é que fazer filmes é transformador. Faz de você uma pessoa diferente. Às vezes penso no que teria acontecido se eu tivesse me tornado o pintor que tanto queria ser quando era jovem. Acho que hoje seria uma pessoa muito solitária, séria e retraí­da. Fazer filmes abriu minha mente, mas também minha personalidade. Eu era um verdadeiro solitário. Não sou mais.” •

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.


NO OSCAR DE FILME INTERNACIONAL, SÓ DÁ A EUROPA

A Sala dos Professores, dirigido pelo germano-turco Ilker Çatak, e Eu, Capitão, do cineasta italiano Matteo Garrone, são outros dois concorrentes que acabam de estrear no Brasil

por Cássio Starling Carlos

Drama banal. Filha de poloneses, a protagonista de A Sala dos Professores vivencia o racismo em uma escola alemã – Imagem: Sony Pictures

O olhar de Wim ­Wenders capta as nuances do cotidiano banal de um homem japonês em Dias Perfeitos. O espanhol J.A. Bayona, acostumado a dirigir superproduções sobre desastres reais, reconstitui a luta dos sobreviventes de um acidente aéreo nos Andes em A Sociedade da Neve. O britânico ­Jonathan Glazer mostra, em Zona de Interesse, a rotina plácida da família de um comandante nazista que vive do outro do muro de Auschwitz.

Em A Sala dos Professores, em cartaz desde a quinta-feira 29, o germano-turco Ilker Çatak dramatiza pós-verdades e racismos no drama de uma professora, filha de ­poloneses, numa escola alemã. Se o filme fosse um episódio de uma série sobre dilemas morais, a gente não perderia tempo em comentá-lo nas redes sociais.

O italiano Matteo Garrone, por sua vez, acompanha a jornada heroica de dois adolescentes senegaleses em busca do “sonho” na Europa em Eu, Capitão, que também acaba de estrear.

Ele usa a fórmula de ­Gomorra (2008), de denúncia social revestida de realismo brutal, aplicada ao tema da imigração. O resultado é um filme formatado para Oscar: exala bons sentimentos e tem uma “linda fotografia”. O olhar europeu horrorizado diante da barbárie dos outros aproxima-o de um modo ultrapassado de representação.

Esses cinco filmes concorrem ao Oscar de filme internacional, categoria criada nos anos 1950 para simular o reconhecimento de cinemas que não o hollywoodiano. A categoria sempre teve um espaço mínimo na premiação, acomodando o mundo todo em cinco vagas.

Desde a década passada, a Academia vem, no entanto, se esforçando para não confundir hegemônico e homogêneo. Passou assim a incorporar, entre os votantes, profissionais de diversas nacionalidades e a buscar representatividade de gênero, em uma manobra política voltada a assegurar seu soft ­power. A redesignação da categoria, que, em 2020, trocou a palavra “estrangeiro” por “internacional” é parte da estratégia de rebranding.

Naquele ano, a dupla vitória do sul-coreano Parasita nas categorias “melhor filme” e “melhor filme internacional” parecia indicar uma abertura tardia de Hollywood aos cinemas do mundo.

Em 2021, as indicações foram dominadas por cinematografias periféricas (Romênia, Hong Kong, Bósnia-Herzegovina, Tunísia), embora o vencedor tenha sido Druk – Mais Uma Rodada, da Dinamarca, país que acumula 12 indicações e três vitórias.

Desde então, produções da Europa ocidental e do Japão voltaram a dominar, sobrando uma ou nenhuma vaga para o “resto do mundo”. Em 2024, havia semifinalistas do México, Armênia, Marrocos, Islândia, Butão e Finlândia. O ucraniano e o tunisiano sobreviveram, mas realocados na categoria “documentário”.

Neste ano, as indicações se resumem a quatro europeus e um japonês dirigido por um autor-grife alemão. Origem, obviamente, não é atestado de qualidade, assim como a escolha de “melhor qualquer coisa” não é sinônimo de superioridade. Mas, ao apostar todas as fichas num jogo só, o Oscar fica como uma estrela desfilando no tapete vermelho com look antiquado.

Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.

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