Cultura

Uma Noite em 67, o livro

A matéria bruta sobre a noite de 21 de outubro reúne as entrevistas completas e protagonistas mais à vontade do que no filme

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O ano de 1967 foi aquele que começou com uma tragédia. Três astronautas americanos – Virgil Grisssom, Edward White e Rober Chaffe – morreram sufocados ainda em terra dentro da nave espacial Apollo I durante a preparação de um voo que os colocaria em órbita durante 14 dias. Seria mais um capítulo do sonho de conquistar a lua*. E 1967 terminou com 546 pessoas presas em Nova York durante um protesto contra a guerra do Vietnã, entre elas o pediatra Benjamim Spock e o escritor beat Allen Ginsberg.

Foi em 1967 que os hippies começaram a espalhar pelo mundo a ideia de fazer mais amor e menos guerra, que os Beatles gravaram o antológico Sgt. Pepper’s e que Elvis Presley casou-se com Priscila Beaulieu. Foi também o ano em que o ministro da Defesa de Israel, Moshe Dayan, tornou-se herói de uma guerra que durou apenas seis dias. Foi em 1967 que os guerrilheiros da Serra de Caparaó caíram nas mãos da polícia mineira e que o marechal Costa e Silva tomou posse como presidente do Brasil no lugar de um outro marechal, o  Castelo Branco, em mais um longo capítulo de anos sombrios de ditadura e repressão.

Mas foi uma noite, aquela noite de sábado 21 de outubro de 1967, que parou o nosso país. Parou pra ver a finalíssima do III Festival da Record, quando um jovem de 24 anos chamado Eduardo Lobo, o Edu Lobo, saiu carregado do Teatro Paramount em São Paulo depois de ganhar o prêmio máximo do festival com Ponteio, que cantou acompanhado da charmosa e iniciante Marília Medalha.

Foi naquela noite que Chico Buarque entoou sua Roda Viva ao lado do MPB-4 de Magro, o arranjador. Que Caetano Veloso brilhou cantando Alegria Alegria com a plateia ao som das guitarras dos Beat Boys, que Gilberto Gil apresentou a tropicalista Domingo no Parque com os Mutantes, que Roberto Carlos mudou de ritmo com Maria, Carnaval e Cinzas e que Sérgio Ricardo perdeu a cabeça quebrando o violão e jogando na plateia depois de muito insistir em cantar Beto Bom de Bola. Contando assim, quase 46 anos depois, pode parecer exagero dizer que o país parou por conta de um festival de música, mas é tudo verdade.

Aquela noite que acabou virando filme, em 2010, nas mãos de Renato Terra e Ricardo Calil, agora virou livro. Todo livro que vira filme ou vice-versa provoca sempre uma discussão do tipo “gostei mais do filme”, “gostei mais do livro”. Não é o caso de Uma Noite em 67. O filme que levou uma multidão considerável aos cinemas brasileiros é, sem a menor sombra de dúvida, um documento e tanto, rico em imagens históricas e emocionantes pontuado por depoimentos esclarecedores. O livro que está sendo lançado agora é a história daquela noite, ampliada e em estado que no jargão jornalístico chamamos de matéria bruta. Quem viu o filme vai se deliciar com as histórias – e algumas fofocas – que cada um tem para contar, agora sem os cortes necessários que um filme exige. E quem não viu o filme tem diante de si um livro de histórias, pensando bem, de História.

Uma noite em 67 , o livro, reúne as entrevistas que estão no filme só que completas. Os protagonistas estão muito à vontade. Eles se soltaram para contar casos saborosos não somente daquela noite que parou o Brasil mas histórias de um período efervescente e muito criativo do nosso país. As rixas entre a turma da “música popular brasileira autêntica” e a turma da guitarra, a turma do banquinho e do violão que deu de cara com a explosão elétrica da tropicália que já não mais engatinhava mas dava seus primeiros passos. Tudo isso recheado de um iê iê iê bem água com açúcar de uma jovem guarda que começava a entregar os pontos. Até mesmo uma passeata contra o uso da guitarra na MPB é lembrada pelos dezesseis entrevistados.

Tudo começa com o depoimento de Zuza Homem de Melo, que cuidava do som do festival e termina com Ferreira Gullar, membro do júri. Passando por Jair Rodrigues, Chico Buarque, MPB-4, Nana Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Marilia Medalha, Capinam, Nelson Motta, Paulinho Machado de Carvalho, Júlio Medaglia e Chico de Assis.

Espertos e atentos em destrinchar os fatos e boatos, os entrevistadores queriam saber de tudo, nos mínimos detalhes. E nada escapou. Quem não gostaria de saber a história de Gilberto Gil que no dia de apresentar a sua Domingo no Parque teve um piripaqui e foi para o hotel? Só voltou ao Paramount depois que Paulinho Machado de Carvalho, o diretor da Record foi até o seu quarto e o convenceu a participar, depois de dar-lhe um bom banho ao lado de Nana Caymmi, sua mulher na época. Alguém sabia que Gil ardia em febre enquanto cantava sua música?

Quem não quer saber o que passou na cabeça de Sérgio Ricardo antes, durante e depois de quebrar o violão e jogar na plateia? No livro você fica sabendo que quando cortaram o som do seu microfone, ele disse o seguinte: “Vocês são uns animais, país subdesenvolvido, vocês são uns animais, vocês são uns animais” E fica surpreso ao saber que Sérgio Ricardo nunca mais viu aquelas imagens das vaias e do violão sendo quebrado. Está tudo no livro.

Mas as histórias não param por aqui. Cada um tem una para contar. Um detalhe saboroso do livro é saber a versão que cada um dá para um mesmo fato. Como a reunião que Gilberto Gil convocou para discutir, na casa de Sérgio Ricardo, os rumos da música popular brasileira. Todos se lembram, alguns com detalhes e outro vagamente, da tal reunião mas ninguém se lembra de nada que Gil disse em seu discurso naquele dia, na sala do cantor de Beto Bom de BolaUma noite em 67 é desses livros que você só larga quando termina e quando termina passa dias cantarolando “caminhando contra o vento, sem lenço sem documento” ou “quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar!”

Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil. Editora Planeta, 296 páginas, 34,90 reais

 

*Alberto Villas é jornalista e escritor, tinha 17 anos naquele noite em 67 e torcia para Alegria Alegria ganhar.    

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