Cultura

Uma ficção moderna, com um protagonista à moda antiga

‘Sombra do Paraíso’ é uma das raras apostas que fogem do circuito de obras sci-fi dos anos 40 e 80 e tem seu valor

Publicação parece aposta na popularidade de Goyer, roteirista da trilogia Batman e de 'Call of Duty'
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Desde 2008, a Editora Aleph publica uma série de clássicos da ficção científica de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick e outros monstros sagrados, quase sempre traduções de obras dos anos 1940 aos 1980, já editadas anteriormente no Brasil e com um público pequeno, mas fiel. Desta vez, decidiu se arriscar um pouco mais. Sombra do Paraíso (R$ 39,90, 456 páginas), de David S. Goyer e Michael Cassutt, originalmente publicado em 2011 com o título Heaven’s Shadow, é o primeiro de uma trilogia conhecida como “A Saga de Keanu”, cujos títulos seguintes foram publicados em 2012 (Heaven’s War) e 2013 (Heaven’s Fall). 

Por que esse romance? Não é dos mais inovadores do seu gênero da última década, nem foi dos mais bem recebidos pelo público ou pela crítica. Parece mais uma aposta na popularidade de Goyer, roteirista de vários sucessos de Hollywood (inclusive a trilogia Batman de Cristopher Nolan, a série Blade e O Homem de Aço), quadrinhos de super-heróis e videogames (Call of Duty) e no fato de a trama incluir um brasileiro como personagem secundário do que no valor real da obra ou em Cassutt, escritor de fantasia e ficção científica e roteirista ou editor de episódios das séries Max Headroom, Stargate e Além da Imaginação.

Este resenhista detestaria, porém, desestimular a editora de voltar a publicar obras contemporâneas. Trata-se, no mínimo, de uma amostra interessante da média da atual produção de ficção científica literária nos Estados Unidos. Não é genial, mas é superior em técnica e maturidade à maior parte do que se publicava na Golden Age. Como admitiu um de seus expoentes, Thomas Sturgeon, em 1951, “90% da ficção científica é bobagem, mas 90% de tudo também é”. As bobagens de hoje são mais inteligentes e profissionais.

Entre os pontos positivos está o tratamento razoavelmente realista da operação de uma missão espacial do futuro próximo. Comete alguns equívocos ao lidar com unidades de medidas e com as implicações de uma gravidade não terrestre, mas em geral o tratamento da tecnologia e das ciências naturais é sério o suficiente para merecer a classificação de ficção científica hard. A lição de casa sobre os jargões e procedimentos da NASA foi bem feita e o lado humano do protagonista Zachary Stewart e de seus conflitos entre família e profissão, medo e entusiasmo chega a lhe dar vida, mesmo se ele é demasiado altruísta, maduro e puro para ser totalmente convincente. O livro leva mais de cem páginas para dizer a que veio, mas a partir desse ponto consegue criar um razoável clima de suspense e mistério. Uma amostra:

O ataque ao Respiradouro Vesuvius, que começou com o bombardeamento do rover Buzz, seguido da queda livre sem paraquedas do Coronel Patrick “Pogo” Downey da USAF, teve continuidade com a aterrissagem por queda livre do dr. Zachary Stewart e, depois, com o trenó de equipamentos fornecido pela Coalizão de Nações de Navegação Espacial.

Os cosmonautas Lucas “O Maior Astronauta do Mundo” Munaretto da AEB e Anatalia Yorkina da Agência Espacial Federal Russa seguiram mais tranquilamente; vieram equipados com equipamento de rapel e optaram por deixar cordas de ancoragem no topo antes de deslizarem para baixo.

 

Para ser uma obra memorável, falta o senso de deslumbramento, uma ideia inovadora ou um personagem carismático, capaz de fazer da trama mais que uma série de aplicações competentes de manuais de redação e roteiro. Aos olhos de um leitor experiente do gênero, Sombra do Paraíso parece uma colagem a partir de temas clássicos, de obras-primas como Encontro com Rama de Clarke e Solaris de Stanislaw Lem aos paranoides filmes B dos tempos da Guerra Fria, com dilemas e conflitos tradicionais abordados de maneira não muito inovadora, clichês cinematográficos e personagens na maioria genéricos e pouco profundos.

E os fatores que impedem este romance de ser totalmente satisfatório como obra mediana de pretensões sérias são a arbitrariedade na condução da trama, principalmente ao se aproximar conclusão do volume, e o tratamento decepcionante dos personagens secundários. Para explicar este ponto é preciso adiantar alguns elementos da trama.

Surge um objeto originário de fora do Sistema Solar cuja órbita o levaria para as vizinhanças da Lua, o que o fez ser classificado como um NEO (Near-Earth Object, “Objeto próximo da Terra”) e receber o apelido de “Keanu”, trocadilho com o personagem de Matrix. Há missões lunares tripuladas em preparação tanto da NASA quanto de um consórcio indiano-russo-brasileiro (curiosamente, jamais se menciona a China, principal rival dos EUA na vida real) e ambas as organizações decidem aproveitar a oportunidade única de explorar esse corpo extrassolar.

O espírito de “corrida ao espaço” é compreensível e dá para perdoar a improvável acrobacia imaginada pelo roteirista para fazer a nave estadunidense passar a perna na rival e tornar-se a primeira a pousar em Keanu. O problema é desperdiçar a oportunidade de tratar com inteligência de questões de integração e diversidade.

Além de todo o pessoal dos centros de controle de missão em Houston e Bangalore, juntam-se cosmonautas de três nações dos BRICS e entre os estadunidenses há duas astronautas, uma delas negra, mas é para “preencher as quotas”, pois são tratados como meros instrumentos do enredo e do protagonista. Este é um homem branco, anglo-saxão, protestante, disciplinado, profissional perfeito e pai viúvo responsável, com todas essas credenciais afirmadas com insistência. Já as mulheres astronautas se mostram frágeis e emotivas e os estrangeiros dóceis e prestativos. O brasileiro é descrito como bonitão e medíocre, mas descrito de maneira condescendente e sarcástica como “o maior astronauta do mundo”.

Stewart não só comanda sua tripulação, como todos os integrantes da equipe rival, inclusive o comandante indiano Taj, aliás caracterizado no início pela irritação com a arrogância dos americanos, obedecem sem hesitar às suas ordens quando o encontram. É inverossímil e piora quando se percebe que, por estranho que pareça, a missão vinda da Índia está tecnologicamente mais preparada e, ao contrário da concorrente da NASA, sabia antes de chegar que Keanu é uma imensa nave estelar alienígena, como a Rama de Clarke. Jornada nas Estrelas, nos idos de 1966, era mais hábil ao relativizar o comandante WASP, deixar ver seus defeitos, valorizar o trabalho em equipe e dar oportunidades à variada tripulação de demonstrar iniciativa, coragem e competência.

O ponto culminante da história é a exploração do interior de Keanu. Forma-se automaticamente um ambiente habitável e respirável para humanos e surge uma espécie de colmeia da qual saem pessoas conhecidas dos exploradores como mortas que foram de alguma maneira recriadas para a vida pela tecnologia alienígena, entre as quais a esposa do protagonista. Ao contrário do protagonista do Solaris de Lem, Stewart recebe amorosamente e sem conflitos a mulher ressuscitada, enquanto a cosmonauta russa assassina o homem que encontra, antigo treinador que, insinua-se, abusou dela no passado.

Ainda mais que os coadjuvantes humanos, os alienígenas, de mais de uma espécie, são ferramentas de enredo que surgem e desaparecem ex machina para criar ou resolver problemas. Juntamente com os fragmentos de informação necessários para criar suspense, os misteriosos Arquitetos de Keanu transmitem por meio da esposa de Stewart que, apesar de sua virtual onipotência e onisciência, necessitam da ajuda de frágeis e ignorantes humanos – um dos mais antigos clichês da ficção científica – para travar uma guerra com misteriosos e poderosos inimigos, razão pela qual enviam duas sondas para capturar um número não especificado de humanos de Houston e Bangalore, inclusive a filha do protagonista.

Fica demasiado visível a mão pesada do autor a conduzir a trama por um rumo arbitrário, criar suspenses artificiais e forçar a metáfora religiosa que faz da imaginária ciência alienígena uma metáfora do “arrebatamento” dos evangélicos e do paraíso cristão no qual os justos hão de ressuscitar. Talvez por isso tenha sido necessário imaginar um protagonista tão banal. Só um mocinho WASP à moda antiga se encaixaria nesse cenário sem fazer a história soar absurda.

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